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Revista USP

Print version ISSN 0103-9989

Rev. USP  no.89 São Paulo Mar./May 2011

 

Ciência, tecnologia e produção no Butantan

 

 

Hernán Chaimovich

Professor titular de Bioquímica do Instituto de Química da USP e superintendente geral da Fundação Butantan

 

 


RESUMO

O Instituto Butantan (IB) é uma instituição pública centenária do estado de São Paulo. Os trabalhos científicos produzidos por pesquisadores do IB, bem como a visibilidade internacional dos resultados, aumentaram significativamente na última década. As vacinas e soros hiperimunes produzidos pelo IB com tecnologia própria, parcela majoritária dos produtos usados no Brasil, foram objeto de publicações científicas de pesquisadores do IB. O sistema Instituto/Fundação Butantan constitui uma instituição singular em que pesquisa básica, desenvolvimento tecnológico e produção, reunidos num espaço único, providenciam, para o Brasil, imunobiológicos na fronteira do conhecimento com tecnologia no estado da arte.

Palavras-chave: Instituto Butantan, vacinas, tecnologia.


ABSTRACT

The Butantan Institute (IB) is a São Paulo state public institution over a hundred years old. The scientific works produced by researchers at IB, as well as the international visibility of their results, have grown considerably in the last decade. The vaccines and hyperimmune serums produced at IB by means of its own techno-logy, which make up most of the products of this kind used in Brazil, have been object of scientific publications by IB researchers. The system which encompasses the Butantan Institute and the Butantan Foundation make up a one-of-a-kind institution in which basic research, technological development and production are gathered in one single space. That provides Brazil with immunobiologicals at the frontier where state-of-the-art knowledge and technology meet.

Keywords: Butantan Institute, vaccines, technology.


 

 

Instituto Butantan, uma instituição paulista centenária, celebrou os 110 anos de sua fundação em 23 de fevereiro de 2011. A associação entre ciência fundamental e produção de imunobiológicos para servir à saúde pública brasileira esteve presente desde o seu início.

No século XIX surgem em São Paulo centros de pesquisa em biologia como resposta a necessidades específicas, fora das escolas superiores profissionais (Morel, 1979). Em 1893 é criado o Instituto Bacteriológico, no qual Adolfo Lutz introduz métodos modernos de bacteriologia identificando bacilos de cólera e febre tifoide bem como eucariotos unicelulares responsáveis por amebíases. Adolfo Lutz é um exemplo ímpar de cientista, administrador e homem público. Cientista prolífico, cobre áreas da biologia que incluem estudos de efeitos terapêuticos de produtos naturais, descrição de novas espécies de crustáceos de água doce, bacteriologia, imunologia e saúde pública. Diretor do Instituto Bacteriológico, desde 1893 até 1908, é um dos responsáveis pela sua fundação1.

Em 1898 ocorre um surto de peste bubônica no porto de Santos e o Instituto Bacteriológico estrutura um Instituto Serumtherápico que, em 1901, é instalado na Fazenda Butantan. O primeiro diretor foi Vital Brazil, mineiro de Campanha (1865-1950) e um cientista internacionalmente reconhecido pelas suas contribuições em imunologia decorrentes de seu trabalho com soros antipeçonhentos.

A existência de instituições de pesquisa fundamental e produção de insumos para saúde pública permitiu que o estado de São Paulo fosse pioneiro na internacionalização dos conceitos de regulação de potência de vacinas. A cooperação internacional emerge cedo quando Arnaldo Vieira de Carvalho manda uma amostra de vacina contra varíola produzida no Brasil para um laboratório suíço a fim de verificar a sua eficácia (Barton, s.d.)2.

A relação ciência, tecnologia e inovação se encontra presente desde a fundação dos institutos relacionados com a saúde no estado de São Paulo. O Instituto Vacinogênico, dirigido por Arnaldo Vieira de Carvalho, por volta de 1910, efetuou uma importante inovação, que aumentou muito sua produtividade. A nova técnica de enchimento de tubos introduzida por Arnaldo Vieira de Carvalho substituiu a via sucção bucal por uma bomba hidráulica para enchimento dos tubos de vacina. Através de um mecanismo por ele desenvolvido, conseguia-se enfeixar um grande número de tubos em um mecanismo que os enchia de uma só vez. Essa inovação técnica permitia ao instituto envasar 35 mil tubos por hora de trabalho (Teixeira & De Almeida, 2003).

A parceria/competição entre o estado de São Paulo e o Rio de Janeiro em relação à saúde pública é característica desses tempos.

"É preciso não esquecer do cenário tenso das disputas políticas no início do século XX. Apesar do empenho paulista em seu esforço de divulgação e ação, pois não se tratava apenas de propaganda, havia competição entre Rio de Janeiro e São Paulo - nem sempre explícita - pela hegemonia de qual cidade poderia representar a moderna medicina da nação" (De Almeida. 2005).

A instalação de institutos com incumbências claras, no fim do século XIX, cujas missões incluíam pesquisa básica em áreas de interesse à saúde, desenvolvimento de tecnologias de produção e fornecimento de produtos, poderia conquistar resultado num desenvolvimento científico tecnológico de fronteira. Diversos componentes que ajudam a explicar que, depois desse começo heroico, houve um longo período de decadência foram analisados num artigo publicado por Camargo e Sant'anna (2004). É claro, contudo, que o esgotamento do modelo teve muito a ver com a perda do conceito da necessidade de acompanhar a produção com a criação de ciência de fronteira relacionada, ao menos em parte, com a missão do instituto.

A incorporação de Isaias Raw ao Instituto Butantan na década de 80 originou um movimento de retomada da missão histórica dessa instituição. Relatado em artigos acadêmicos e contribuições a revistas e jornais por ele e outros, deve-se citar um trabalho no qual Raw, em coautoria com Hisako Higashi, descreve a importância da política de autossuficiência e inovação na produção de vacinas e saúde pública (Raw & Higashi, 2008).

Hoje, a produção científica do Instituto Butantan se estende desde a taxonomia até a biologia de sistemas, e os métodos utilizados pelos quase duzentos pesquisadores vão do sequenciamento de DNA e proteínas até a dinâmica molecular. Nesta seção analisarei a produção e a relação entre a ciência e os produtos oferecidos à saúde pública.

O número de trabalhos indexados no ISI e a sua visibilidade, estimada pelo número de citações, aumentaram nas últimas duas décadas (Figura 1)3. Várias características desses dados merecem comentário. O número de trabalhos publicados cresce com o tempo, porém os dados mostram uma estrutura que sugere que, durante esse período, fatores internos e/ou externos mudaram o ritmo. Embora uma análise detalhada desse fenômeno fuja do propósito deste artigo, é necessário notar que a determinação da necessidade de financiar pesquisa básica com recursos de agências de apoio à pesquisa, como a Fapesp, é recente e pode ser correlacionada com o começo da mudança em quantidade e visibilidade da ciência produzida no instituto. Deve-se notar, também, que a visibilidade da ciência produzida no Butantan tende a aumentar significativamente mais que o número de trabalhos publicados, mostrando uma possível preocupação com a qualidade da ciência produzida.

 

 

Outra característica da produção científica do Instituto Butantan é a sua contribuição setorial à ciência brasileira. O quadro de pesquisadores do instituto é constituído por quase duzentos doutores, representando menos de 0,3% do total de pesquisadores com a mesma titulação trabalhando no Brasil, no governo ou no ensino superior (68.636)4. Uma pesquisa na base de dados do Web of Science, usando como base de dados os trabalhos indexados entre 1990 e 2009, mostra que em algumas áreas do conhecimento o Butantan chega a contribuir com 30% da ciência produzida no país (Figura 2). Nessa figura também se pode apreciar uma das características que distingue a relação entre produção e ciência no Instituto Butantan. A busca de artigos com palavras-chave relacionadas com produtos já oferecidos pelo instituto, ou em desenvolvimento, recupera trabalhos em que os pesquisadores do Butantan contribuem à ciência brasileira numa proporção de magnitude maior que a sua representação no universo dos doutores.

 

 

Uma metodologia útil para caracterizar o tipo de produção institucional é a análise da frequência com a qual palavras aparecem no espaço das palavras-chave das publicações indexadas. Tomando como referência as palavras-chave das publicações de 2009, indexadas por pesquisadores do Instituto Butantan, uma análise de frequência5 demonstra que as palavras mais representadas (> 50 vezes) são: doença, veneno, enzimas, tecido, expressão, DNA, serpente, vírus, gene. Palavras que representam produtos (proporcionados ou em desenvolvimento) também aparecem com alta frequência. Exemplos são: leptospira (38), pertussis (35), vacinas (34), raiva (32), hepatite (30) (Esquema 1).

 

 

A produção científica do Instituto Butantan compreende áreas diversas da biologia - abrangendo taxonomia e dinâmica molecular de proteínas - e é de visibilidade crescente. Esse ambiente criativo permite, também, incorporar conhecimento a produto. Caracterizar esse fluxo, ao menos inicialmente e sem pretender oferecer outra visão senão uma muito pessoal, é relevante. Um esquema, de autoria de Isaías Raw, resume em parte as relações entre pesquisa, desenvolvimento e produto no Butantan (Esquema 2). Para expor as relações apresentadas, é necessário, preliminarmente, descrever o papel da Fundação Butantan no apoio às atividades do instituto e apresentar algumas especificidades da produção de imunobiológicos no Brasil.

 

 

Fundações privadas de apoio a entidades públicas surgem para permitir atividades de entes públicos que podem ser mais facilmente geridas em âmbitos privados, sem necessariamente descaracterizar as missões e estruturas de poder das instituições apoiadas (Grazzioli & Rafael, 2010). Descrever o papel da fundação pode ser feito transcrevendo-se o artigo 3º do Estatuto:

"A Fundação Butantan tem por finalidades: I - colaborar com o Instituto Butantan através da cooperação técnica e financeira, visando facilitar o cumprimento de suas atribuições legais relativas ao desenvolvimento científico, tecnológico, cultural e à prestação de serviços assistenciais à comunidade; II - operacionalizar a produção de imunobiológicos, biofármacos e de outros produtos afins, com vistas ao atendimento das políticas de saúde pública; III - proporcionar ao Instituto Butantan melhores condições para o recrutamento, a fixação, a formação e o aprimoramento de recursos humanos, bem como para o seu atendimento assistencial; IV - colaborar com a profissionalização e a modernização da gestão das atividades de produção, de pesquisa, de ensino e de cultura do Instituto Butantan; V - contribuir para o incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo em consonância com suas finalidades; VI - estimular trabalhos nas áreas didática, assistencial e de pesquisa, através do apoio material e da remuneração dos recursos humanos necessários; VII - patrocinar o desenvolvimento de novos produtos e equipamentos, sistemas e processos; VIII - promover a divulgação de conhecimentos tecnológicos e a edição de publicações técnicas e científicas".

Além de apoiar as atividades do instituto, a Fundação Butantan viabiliza a transferência de conhecimento, o desenvolvimento de produtos e a produção.

A produção de imunobiológicos no Brasil se caracteriza por um estatuto legal que permite que produtores públicos ofereçam insumos produzidos localmente para a saúde pública dentro de um marco definido em lei. A lei 8.666, de 21 de junho de 1993, regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, instituindo normas para licitações e contratos da administração pública e dando outras providências. Nessa lei, o art. 24 afirma que é dispensável a licitação quando, por exemplo (inciso VIII), se trata da aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a administração pública e que tenha sido criado para esse fim específico em data anterior à vigência dessa lei, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado (redação dada pela lei 8.883, de 1994). Essa lei permite, na prática, que a política de autossuficiência em imunobiológicos6 se torne realidade. Dentro desse marco legal, o Ministério da Saúde (MS), responsável pelo gerenciamento e execução do sistema SUS, pode estimular a pesquisa e o desenvolvimento de produtos novos e, ao mesmo tempo, incentivar a produção de imunobiológicos por produtores públicos nacionais. O MS, portanto, ao ser simultaneamente comprador de imunobiológicos e investidor no desenvolvimento tecnológico, pode determinar rumos de pesquisa e direções de produção. Análise detalhada desse modelo foge aos propósitos deste artigo. Concomitantemente, o Brasil, através do SUS, adota uma política muito bem-sucedida de saúde universal para todos os brasileiros, que inclui um conjunto crescente de vacinas. Como resultado desse estímulo duplo e do tamanho do mercado, é natural que produtores públicos de vacinas e soros hiperimunes ajustem as estratégias para servir à saúde pública e intensificar os esforços de pesquisa e desenvolvimento.

A produção de imunobiológicos, o domínio de tecnologias de produção e o contínuo desenvolvimento de novos produtos resultam de pesquisa local, incorporação de conhecimento global e acordos de transferência de tecnologia, que incluem produtos e processos. Políticas continuadas de exercício do poder de compra do Estado, pelo Ministério da Saúde, investimento em infraestrutura estadual e federal, que se estendem por duas décadas e novos financiamentos para pesquisa são responsáveis pela incorporação da biotecnologia na saúde humana no Brasil. Duas instituições públicas, os institutos Butantan e Biomanguinhos, aproveitaram essas oportunidades para construir um notável patrimônio de conhecimento que passa desde os aspectos mais básicos até as tecnologias mais avançadas de produção. Especial menção merece também a capacidade dessas instituições de dominar o complexo ciclo de desenvolvimento de produtos biotecnológicos desde a invenção até o produto colocado na prateleira. A manutenção desse ritmo passa pelo reexame da situação jurídico-institucional, pois a insegurança jurídica, fruto da complexidade da legislação, os conflitos entre os diversos níveis de controle, impedem em muitos casos um avanço com segurança. Uma responsabilidade adicional para instituições públicas detentoras de um patrimônio dessa magnitude de conhecimento é o compartilhamento dessa riqueza com a sociedade a fim de permitir a incorporação de outros atores, em particular o setor privado, ao desenvolvimento da biotecnologia para saúde.

O Esquema 2 mostra as relações múltiplas entre a pesquisa e a saúde pública numa parceria público-privada na qual o responsável pelas atividades fim é o instituto, e a fundação apoia, em especial, aquelas relacionadas com o desenvolvimento e a produção.

A pesquisa nesse esquema representa todo o universo de temas de pesquisa no Instituto Butantan (vide supra). Alguns temas têm relação direta com produtos já oferecidos ou em desenvolvimento. Estes, junto com todo o universo da pesquisa biológica na instituição, formam um espaço de criação que permite uma atmosfera de criatividade e comunicação que, certamente precisando de melhoria, conduz à possibilidade de formular novos produtos para a saúde pública de forma continuada.

"É justamente este ambiente, onde se produz ciência de fronteira, que explica o aumento de produção de imunobiológicos. Não existe possibilidade de produzir imunobiológicos, continuamente no limite da tecnologia, sem um ambiente de pesquisa básica e aplicada que se estenda além das necessidades imediatas das fábricas. Somente se pode produzir insumos para saúde pública na mais avançada tecnologia num ambiente onde se pense e crie em áreas diversas como evolução e espectrometria de massa, imunologia básica e biologia celular, saúde pública e fracionamento de venenos. Assim, embora as relações não sejam simples nem lineares, creio que os aumentos da produção científica e da produção de vacinas e soros estão relacionados" (Chaimovich, 2010).

A divisão clínica da fundação, além de se responsabilizar pelos ensaios clínicos de novos produtos, também realiza pesquisa em saúde pública. O diálogo com a divisão clínica é essencial até para a realização dos testes pré-clínicos, que somente serão úteis para fins de registro seguindo protocolos já estabelecidos7.

O desenvolvimento tecnológico de produtos que, potencialmente, serão usados em humanos envolve assuntos diversos que se iniciam com uma descoberta e vão desde o estudo das condições para aumentar a escala, normas regulatórias e ambientes de produção que reúnam condições de boas práticas de manufatura. Cada um desses assuntos é altamente interdisciplinar, pois requer a interação contínua entre inventores, engenheiros, sanitaristas e vários outros especialistas, desde garantia de qualidade, até controle e ética. A etapa de desenvolvimento é, seguramente, o cerne gerencial mais delicado, pois envolve a coordenação de esforços de pessoas com experiências e culturas distintas. Na história recente do Instituto Butantan dois personagens tiveram a responsabilidade de coordenar a etapa de desenvolvimento, o prof. dr. Isaías Raw e a dra. Hisako Higashi Gondo. Essa etapa, que considero heroica, contou com a dedicação de uma série de pesquisadores do Instituto Butantan que construíram condições para passar uma série de produtos desde a bancada do laboratório de pesquisa até fábricas da mais moderna tecnologia8.

Correndo o risco de reafirmar o óbvio, é necessário repetir que a pesquisa no laboratório não se esgota na descrição do processo em pequena escala. Aumentar a escala de produção - de uma proteína (recombinante ou não) ou uma bactéria - é um trabalho de pesquisa que, muitas vezes, requer voltar ao laboratório onde se fez a descoberta inicial. O processo de desenvolvimento requer, além do laboratório de pesquisa, plantas-piloto capazes de permitir escalonamento, a melhora do processo produtivo, bem como uma produção que comporte quantidade de produto suficiente, pelo menos, para ensaio clínico de fase I (Gad, 2009). Dependendo do produto, e da dificuldade do aumento de escala, a fase de desenvolvimento pode exigir pesquisa em laboratórios-piloto que não necessitam condições GMP. O alvo dessa etapa é a formulação de um processo produtivo, devidamente documentado, que possa ser transferido para uma fábrica de demonstração ou outra planta-piloto onde os lotes necessários para ensaios clínicos (GMP) possam ser preparados.

A internacionalização do Butantan é clara não somente na pesquisa, mas também no desenvolvimento de produtos. Acordos de transferência de tecnologia ou licenciamento de patentes com institutos públicos, especialmente dos Estados Unidos, vêm permitindo o aprimoramento de vacinas diversas, como rotavírus, dengue e Haemophilus influenzae.

A produção de imunobiológicos requer a construção de fábricas dedicadas a cada produto. No Instituto Butantan, 2010, há fábricas de vacinas contra difteria, tétano, pertussis, hepatite B (recombinante) e influenza. O início de produção da vacina contra raiva deve acontecer em 2011. Outro imunobiológico já registrado, o surfactante pulmonar, deve reiniciar a produção também em 2011. Somente a fábrica de influenza foi construída mediante um acordo de transferência de tecnologia com a Sanofi-Pasteur. Todas as outras instalações fabris foram resultado de projetos e tecnologias próprias.

A Tabela 1 ilustra a produção de vacinas no Instituto Butantan no ano de 2009. O total produzido representa uma percentagem significativa das vacinas aplicadas pelo SUS no Brasil e mais da metade daquelas vacinas produzidas no país.

 

 

O desenvolvimento de novas vacinas, especialmente as de baixo custo, vem permitindo aumentar a cobertura de populações crescentes no mundo. Seguindo a sua tradição centenária, o Instituto Butantan vem desenvolvendo e/ou incorporando tecnologia para oferecer ao Brasil produtos que resultam de avanços científicos com os quais os pesquisadores da instituição também colaboram.

Adjuvantes permitem aumentar a eficiência de vacinas (Davies, 2010). O aumento de eficiência pode, também, resultar numa significativa redução do preço do produto. Um glicolipídio complexo, derivado da preparação de vacina contra pertussis de baixa reatogenicidade (Zorzeto, 2009), descoberto no instituto, monofosforil fosfolipídio A (MPLA) (Quintilho, 2009), mostrou-se um adjuvante eficiente para vacinação contra influenza H1N1 em humanos9.

Uma lista parcial de novos produtos, em etapas distintas de desenvolvimento, inclui:

• Nova BCG: vacina combinada contra tuberculose e hepatite B a ser ministrada para recém nascidos (Carniel, 2008).

• BCG-coqueluche-hepatite B: BCG recombinante com proteína de pertussis e hepatite B (Nascimento e col., 2009).

• OncoBCG: para o tratamento de papiloma de bexiga, com BCG recombinante (Andrade e col. 2010).

• Hemophilus B, destinada essencialmente para vacinas combinadas e exportação (Takagi e col., 2008).

Outros produtos fabricados pelo Instituto Butantan, há mais de cem anos, são soros antiofídicos hiperimunes. Hoje o instituto produz soros contra sete serpentes distintas, escorpiões, aranhas, lonômia ("taturana assassina"), abelhas, antidiftérico, antibotulínico, antirrábico e antitetânico. Os soros Butantan, usados dentro e fora do Brasil, são produzidos a partir de plasma equino, tratados e purificados usando-se tecnologias de fronteira. Embora no Brasil os acidentes por mordida de cobra sejam raros, esta não é a situação no mundo. Recentemente, a Organização Mundial da Saúde incorporou mordida de cobras ao conjunto de doenças tropicais negligenciadas (Williams e col., 2010). O desenvolvimento de novas tecnologias de obtenção e purificação, bem como a colaboração internacional para produção de soros hiperimunes contra veneno de animais de vários países, está em ampliação contínua (Leão, Ho e Junqueira da Azevedo, 2009; Guidolin e col., 2010). A tradição centenária do Instituto Butantan como produtor de soros hiperimunes, a pesquisa fundamental em imunologia e o desenvolvimento na produção colocam como responsabilidade adicional, para hoje e para o futuro, a extensão da produção de soros hiperimunes contra venenos, tanto de animais peçonhentos do Brasil como de outros países e continentes.

 

CONCLUSÃO

O sistema Instituto/Fundação Butantan constitui uma instituição única, em que a associação público-privada permite a existência de uma instituição pública de características especiais. Pesquisa básica, desenvolvimento tecnológico e produção, reunidos num espaço único, providenciam imunobiológicos na fronteira do conhecimento com tecnologia no estado da arte. A parceria com o Ministério da Saúde, principal comprador dos produtos, garante escala de produção. A extensão da pesquisa básica, abrangendo temas biológicos que se expandem, garante espaços de conhecimento e informação que mantêm o instituto inserido na fronteira do conhecimento. Entre os focos a serem destacados se incluem os que têm a ver, diretamente, com a biodiversidade animal brasileira, em especial com animais peçonhentos. Todos os produtos - em uso ou em desenvolvimento - encontram sustentação em linhas de pesquisa que produzem conhecimento universal. Essa situação garante que tanto os processos podem incorporar conhecimento quanto novos produtos, adequados aos rápidos avanços na área de imunobiológicos, podem ser incorporados aos processos produtivos. Além da produção local, as associações com parceiros públicos e privados, no Brasil e no exterior, permitem incorporar conhecimento e tecnologia.

Os desafios do Instituto/Fundação Butantan são do tamanho da sua importância.

Na pesquisa básica, os desafios são paralelos aos da produção científica no Brasil, e em particular no estado de São Paulo. Estabelecidos os alicerces de pesquisa, o alvo estratégico pode ser atingir condições para pautar temas na pesquisa global.

A gestão do desenvolvimento de novos produtos (gestão de conhecimento), da produção (gestão de processos produtivos) e da administração do sistema como um todo não mais se adequa à época heroica. Na verdade o sistema sofre hoje as consequências do sucesso. A implantação de uma gestão adequada à dimensão do patrimônio de conhecimento e ao volume de produção é urgente e está em desenvolvimento.

A riqueza de conhecimento básico e tecnológico do Butantan, mantendo a sua missão como instituição pública, pode ser expandida em, pelo menos, duas direções igualmente importantes:

• O aumento da produção de vacinas baratas deve permitir a oferta de produtos do Butantan aos países de menor desenvolvimento através de organizações multilaterais como o Fundo Rotatório (Paho)10 e o Gavi11.

• É essencial estender o conhecimento presente nos laboratórios de desenvolvimento para a sociedade. Através de parcerias, e com a forte participação dos responsáveis pelos laboratórios-piloto e a produção, deve se considerar a estruturação de programas de pós-graduação profissionalizantes em tecnologias de desenvolvimento e produção de produtos biotecnológicos para uso humano.O treinamento técnico pode também ser estendido, de formas diversas, aos países de menor desenvolvimento, inclusive os que carecem de condições objetivas de instalar unidades de produção.

 

BIBLIOGRAFIA

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1 A Biblioteca Virtual em Saúde apresenta uma coleção primorosa com a vida e a obra de Adolfo Lutz (www.bvsalutz.coc.fiocruz.br).
2 Esse documento é uma versão preliminar. O autor faleceu, num acidente, antes de publicá-lo. John Barton, H., Working Draft "History of Technology Transfer in and Developing World Production of Vaccines". Disponível em: http://www-siepr.stanford.edu/programs/SST_Seminars/VACCINE%20ARTICLE%20JAN%2006.pdf.
3 Dados obtidos no Web of Science em novembro de 2010. As citações representam a soma das citações nos cinco anos subsequentes a sua publicação.
4 Ver: http://www.mct.gov.br/index.php/content/view/5860.html.
5 Ver: http://www.sobolsoft.com/wordfreq/.
6 a) "Proposta de Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde" http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/proposta_tecnologia.pdf; b) Ponte C. F., "Vacinação, Controle de Qualidade e Produção de Vacinas no Brasil a Partir de 1960", in História, Ciências, Saúde - Manguinhos, vol. 10 (Supl. 2), 2003, pp. 619-53; c) "Rumo à Auto-suficiência", São Paulo, Fapesp, maio/2003.
7 Ver: http://www.anvisa.gov.br/legis/portarias/116_96.htm.
8 A história desse período está para ser escrita.
9 A. Precioso e col. Resultados não publicados.
10 Ver: http://www.paho.org/Portuguese/AD/FCH/IM/RF_OperatingProcedures_p.pdf.
11 Ver: http://www.gavialliance.org.