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Revista USP

Print version ISSN 0103-9989

Rev. USP  no.89 São Paulo Mar./May 2011

 

Computação: o terceiro pilar

 

 

Claudia Bauzer Medeiros

Professora do Instituto de Computação da Unicamp

 

 


RESUMO

O artigo examina o cenário brasileiro das atividades em computação como ciência (e não como instrumento, que é a visão dominante dos que não trabalham na área). Começando por dados históricos e uma apresentação quantitativa da nossa produção científica e formação de recursos humanos, termina com uma análise qualitativa, mostrando que, na área, os bons grupos brasileiros são comparáveis a grupos de ponta estrangeiros - quantitativa e qualitativamente. Essa comparação dos aspectos positivos também se estende aos problemas enfrentados, aqui e em todo o mundo, na atração de jovens e na formação multidisciplinar. O artigo enfatiza o papel singular da Sociedade Brasileira de Computação como impulsionadora de grandes redes de pesquisa com abrangência nacional, e destaca iniciativas brasileiras na área que têm obtido repercussão mundial.

Palavras-chave: computação, ciência, Sociedade Brasileira de Computação.


ABSTRACT

This article examines the Brazilian scenario of computer activities as a science - and not just as a tool, which is the prevailing view of those who do not work in this area. It starts with some historical data and a quantitative presentation of our scientific production and human resource formation; and ends with a qualitative analysis. Thus, it shows that in this area the good Brazilian groups are comparable to first-rate foreign groups - both quantitatively and qualitatively. Such comparison of positive aspects is also extended to the problems found, here and all around the world, with attracting young people and in multidisciplinary training. The article stresses the singular role of the Brazilian Computer Society as a driving propeller of big nationwide research networks, and highlights Brazilian initiatives in this area, which has achieved world repercussion.

Keywords: computing, science, Brazilian Computer Society.


 

 

VISÃO GERAL

A computação revolucionou a pesquisa científica, sendo hoje reconhecida como o "terceiro pilar" a sustentar tal pesquisa, junto com os pilares da teoria e da experimentação1. Os primeiros departamentos de computação no mundo surgiram na década de 60, a partir quer de departamentos de matemática (como na Universidade de Waterloo, em 1967) quer de engenharia elétrica (como no MIT, em 1975). Ainda outros combinaram diferentes áreas - por exemplo, em Carnegie Mellon, o departamento criado em 1965 uniu professores de matemática, engenharia elétrica e psicologia (tornando-se assim um dos pioneiros mundiais em inteligência artificial). Na América do Norte, a designação preferencial usa a palavra "computação" (ciência ou engenharia, geralmente conforme a origem); na Europa, o termo mais comum é "informática".

No Brasil, a primeira turma de graduação (em Ciência da Computação) formou-se na Unicamp (curso criado em 1969) e o primeiro programa de pós-graduação (em Informática) foi criado em 1968 na PUC Rio, seguido rapidamente pelo segundo programa, em 1970, na Coppe-UFRJ (em Engenharia e Sistemas de Computação). Independentemente do nome usado, a pesquisa na área está cada vez mais abrangente, indo desde hardware e nanotecnologia até aspectos cognitivos na interação homem-computador.

Passados quarenta anos, a produção acadêmica brasileira é internacionalmente competitiva, e o número de mestres e doutores formados vem crescendo a cada ano, como mostra a Tabela 1. Esses números são ainda mais expressivos se considerarmos que todo o resto da América Latina, excluído o México, forma cerca de trinta doutores por ano, sendo que em vários dos países da região não se faz pesquisa em computação.

 

 

A produção intelectual dos docentes dos bons programas brasileiros é comparável à de programas de excelência na América do Norte ou Europa2. As mesmas conclusões foram obtidas por Laender et al. (2008), que comparam os oito melhores programas brasileiros e 22 programas norte-americanos e europeus de primeira linha, mostrando que a taxa anual média de publicações e o número de alunos formados na pós-graduação, por ano, por docente, são da mesma ordem de grandeza. Para isso, usaram uma base de 52 mil artigos, com cerca de 2.000 autores.

Os programas mais antigos de pós-graduação tiveram um papel importante na formação da massa crítica da pesquisa brasileira, ainda mais relevante porque a computação é um ramo científico recente. Em alguns casos, tais programas permitiram crescimento dessa massa crítica em nível regional (notadamente a UFRGS para a Região Sul, ou a UFPE, no Nordeste). Já a PUC-Rio e, em menor grau, a Coppe têm ex-alunos em quase todos os principais departamentos brasileiros. Se o maior volume de pesquisa se concentra em sete universidades (PUC-Rio, UFMG, UFPE, UFRJ, UFRGS, Unicamp e USP), várias outras exercem liderança regional - por exemplo, a Ufam, a UFMS ou a UFRN. Os principais focos de C&T estão no eixo São Paulo-Campinas-São Carlos, e nas cidades de Belo Horizonte, Recife, Rio e Porto Alegre.

Inicialmente concentrados em poucos locais, os programas de pós-graduação já atingiram quase todos os estados do Brasil. A Figura 1 ordena alfabeticamente as cidades onde havia programas na área em 1999 e em 2009. Em 1999, 15 cidades sediavam 22 programas (sendo três no Rio). Já os 52 programas de 2009 estavam distribuídos em 32 cidades, com vários no Rio (cinco programas), Recife e Fortaleza (com quatro programas cada uma).

 

 

Esse crescimento foi acompanhado por um aumento expressivo de publicações. Os gráficos das Figuras 2 e 3 mostram a evolução, em quarenta anos, das publicações em periódicos e artigos completos em congressos, até junho de 2010. Foram feitos a partir de mineração de dados no Lattes dos docentes cadastrados nos programas de pós-graduação em computação no triênio 2007-09. Essa mineração foi realizada usando o programa scriptLattes, desenvolvido no IME-USP (Mena-Chalco & Cesar Jr., 2009). Os gráficos mostram dados parciais (pois só consideram o Lattes dos docentes cadastrados em um triênio). Ainda assim, ilustram a evolução histórica e o perfil de pesquisa da área, que valoriza artigos em anais de congressos. A taxa global é de 4,1 artigos em congressos para cada artigo em periódico. Nos últimos cinco anos, a taxa variou em torno de 3,4, enquanto em centros de excelência americanos varia de 1,3 (Cornell) a 3 (Ucla)3.

Apenas a partir da década de 90 a pesquisa em computação no Brasil passou a adquirir características realmente multi-institucionais, especialmente com os editais Protem-CC do CNPq, que fomentaram redes com grupos consolidados e grupos emergentes. Ao final da década, começaram a surgir projetos multidisciplinares, envolvendo outros domínios do conhecimento, refletindo uma tendência mundial.

Dado esse panorama, qual o retrato da pesquisa na área no Brasil?

 

SOCIEDADE BRASILEIRA DE COMPUTAÇÃO E A ORGANIZAÇÃO DA PESQUISA NO BRASIL

Qualquer estudo sobre pesquisa em computação, no Brasil, precisa levar em conta as atividades da Sociedade Brasileira de Computação (SBC). Fundada em 1978, tem cerca de 13 mil sócios (dos quais mais de 90% da academia) e 290 sócios institucionais (empresas e universidades). Anualmente promove quarenta eventos científicos e apoia mais vinte, com participantes majoritariamente oriundos de instituições de ensino e pesquisa no Brasil.

À semelhança das grandes sociedades científicas internacionais na área, os sócios podem se filiar a uma ou mais das 24 "comissões especiais", grupos temáticos associados a grandes linhas de pesquisa em computação - como engenharia de software, ou circuitos integrados. Grande parte dos eventos promovidos são ligados a tais linhas, podendo ser de três tipos: congressos e simpósios (com publicação de artigos a partir de seleção por pares); concursos de teses, dissertações ou trabalhos de iniciação científica (publicando os melhores trabalhos); e escolas regionais, em nível de pós-graduação ou graduação, com cursos ministrados por brasileiros e estrangeiros convidados.

A Tabela 2 mostra dados para as duas primeiras categorias, de 2009 a outubro de 2010. Os números entre parênteses indicam o total de trabalhos submetidos: por exemplo, em 2009 houve 1.687 trabalhos publicados em eventos (dentre 4.767 submetidos) e 171 trabalhos de alunos selecionados para concorrerem a prêmios (dentre 454 submetidos). Os dados foram extraídos da base de artigos do sistema Jems, usado pela SBC para gerenciar a submissão, avaliação e publicação de todos os trabalhos dos eventos que patrocina ou apoia.

 

 

A Tabela 3 detalha os artigos segundo as comissões especiais que organizaram o evento correspondente e permite identificar algumas ênfases da pesquisa no Brasil. Mostra, por exemplo, maior concentração de submissões em linhas como engenharia de software ou redes (bem representadas na maioria dos departamentos), e linhas com menos pesquisadores - como realidade virtual ou processamento de linguagem natural.

Trata-se de um retrato apenas parcial da distribuição da pesquisa e do nível de competição para aceitação de artigos. Primeiramente, algumas linhas importantes não têm comissão associada (especialmente em teoria). Em segundo lugar, determinadas comissões (por exemplo, redes) cobrem várias linhas de pesquisa que, nesta análise, desaparecem. Linhas reconhecidas internacionalmente - como robótica - envolvem vários assuntos computacionais, com pesquisa publicada em grande número de eventos (de interfaces a hardwares). Além disso, certas comissões podem organizar eventos como parte de um congresso maior (por exemplo, métodos formais dentro de um evento de engenharia de software). Finalmente, há linhas eminentemente multidisciplinares (bioinformática, geoinformática) cujas publicações se dispersam em eventos de muitas sociedades.

De fato, várias outras sociedades científicas também promovem eventos com forte ligação com pesquisa em computação - como a Sociedade Brasileira de Matemática Aplicada e Computacional (SBMAC), ou a Sociedade Brasileira de Microeletrônica (SBMicro). Esta última realiza várias atividades em conjunto com a SBC, no âmbito da comissão de circuitos integrados. Além de divulgar pesquisa, eventos em linhas mais aplicadas (como bancos de dados ou redes), fomentam transferência de tecnologia, atraindo profissionais de empresas. Por exemplo, alguns padrões de qualidade de software adotados no Brasil foram desenvolvidos sob liderança da Coppe e disseminados em simpósios associados à engenharia de software.

Embora aqui atuemos num grande leque de linhas, em quais nos destacamos internacionalmente?

 

ALGUNS DESTAQUES INTERNACIONAIS E NACIONAIS

Neste cenário de pesquisa, linhas mais tradicionais de atuação convivem com o surgimento constante de novas direções. Somos, por exemplo, reconhecidos mundialmente por pesquisa associada à web e à bioinformática (ambas, como sabido, muito recentes). Temos ainda reconhecimento em linhas mais consolidadas (por exemplo, combinatória). Os parágrafos a seguir ilustram exemplos do impacto mundial ou nacional da pesquisa brasileira.

A Tabela 3 mostra que existe massa crítica de pesquisa em todas as grandes linhas reconhecidas internacionalmente - lembrando que não há comissão especial em teoria da computação, em que o Brasil tem grupos excelentes. Entretanto, não permite apreender como estão distribuídas. Todos os grandes departamentos possuem grupos importantes em quase todas as linhas, e muitas delas estão bem representadas na maioria dos programas.

Certos grupos, no entanto, se destacam em algumas linhas. Um bom exemplo é a UFMG, que sedia o principal grupo brasileiro em recuperação de informação, gerência de dados na web e mineração de dados, com reconhecimento internacional. Além de produção científica de destaque, tal pesquisa já produziu iniciativas bem-sucedidas de transferência de tecnologia, incluindo as empresas Miner Technology Group, vendida para o grupo Folha de S. Paulo/UOL em 1999, e a Akwan Information Technologies, adquirida pelo Google em 2005. Esta última, inclusive, transformou-se no centro de pesquisa e desenvolvimento da empresa americana na América Latina, fazendo de Belo Horizonte um polo de pesquisa em tecnologias da web.

Mais um exemplo de projeção internacional é a bioinformática, impulsionada pelo sucesso do programa Genoma da Fapesp. A pesquisa em computação daquele programa foi desenvolvida no IC-Unicamp, permitindo a montagem e a anotação do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, causadora da praga do amarelinho, que ataca os laranjais. Reuniu 34 laboratórios, envolvendo pesquisadores em várias áreas (como biologia, bioquimica e fitopatologia). Além de ser um dos projetos pioneiros, no Brasil, de pesquisa cooperativa multidisciplinar envolvendo uma grande rede virtual de cientistas, também deu origem à criação de programas de pós-graduação em bioinformática oferecidos conjuntamente por departamentos de ciências exatas e ciências da vida. A par disso, também estimulou a criação de empresas, notadamente a Allelyx, hoje o braço de pesquisa da Monsanto no Brasil.

Ainda outra linha de pesquisa de impacto internacional está associada a linguagens, com destaque para Lua, linguagem extensível e de alto desempenho, criada na PUC-Rio. Um sinal desse reconhecimento é que foi uma das doze linguagens destacadas em 2007 pela conferência sobre história de linguagens de programação da Associação Americana de Computação (ACM), realizada a cada quinze anos. Adotada principalmente para programação de jogos, área em que vem se tornando padrão mundial, tem tido também aceitação em grandes empresas (por exemplo, Cisco ou Olivetti) no desenvolvimento de outros tipos de sistema. Destaca-se ainda na programação de aplicações interativas para TV digital - além de fazer parte do padrão brasileiro, é usada com esse fim fora do Brasil. Outra linguagem com visibilidade internacional é o ArchC, desenvolvido no IC-Unicamp, para a área de hardware, utilizado tanto em universidades (por exemplo Cambridge e Bologna) como em empresas (Philips e Texas Instruments) dentro e fora do país.

A pesquisa em software na linha de redes de computadores permitiu que o Brasil desenvolvesse seu próprio padrão de middleware4 para TV digital (Ginga), criado na PUC-Rio em parceria com a UFPB. O Ginga-NCL é um subsistema do Ginga que se transformou em padrão mundial para IPTV (sistema em que a transmissão de sinais usa o protocolo IP desenvolvido para a Internet). Ainda há vários outros exemplos de reconhecimento internacional do trabalho brasileiro - como a primeira máquina paralela brasileira, desenvolvida na Coppe em 1990, ou toda a pesquisa em software livre, em que estamos nos tornando líderes de P&D.

Se os parágrafos anteriores exemplificam pesquisa brasileira com impacto em todo o mundo, nossa pesquisa, em vários outros domínios, vem criando polos de excelência no Brasil, em que certas instituições se destacam em alguma área específica, atraindo pós-graduandos de toda a América Latina. Pós-doutorandos americanos e europeus vêm ao Brasil para se aperfeiçoar em teoria da computação, especialmente em otimização, combinatória e teoria dos grafos, concentrada em três grandes grupos, que formaram a base dos demais grupos brasileiros na área - IME-USP, Coppe e IC-Unicamp.

Na linha de sistemas embarcados, um exemplo de modelo de cooperação nacional premiada internacionalmente é a Rede Brazil-IP, concebida em 2003 no IC-Unicamp e originalmente financiada pelo CNPq. As universidades participantes (USP, UFRGS, UFPE, UFMG, UNB, UFCG e PUCRS), lideradas pela Unicamp, desenvolveram os maiores circuitos integrados digitais já projetados por universidades brasileiras. Alguns dos circuitos estavam também entre os maiores já projetados no país, pondo o Brasil no seleto clube de países capazes de obter propriedade intelectual de software para projeto de circuitos. O sucesso do projeto transformou-o em um programa nacional do CNPq, hoje administrado pela UPFE.

A UFRGS tem o principal grupo em microeletrônica, em especial em projeto de circuitos integrados e desenvolvimento de ferramentas de software para projeto de circuitos. Formou grande número de mestres e doutores, colaborando para a criação de massa crítica no estado. Graças a isso, o governo federal decidiu implantar em Porto Alegre o Ceitec, vinculado ao MCT, que terá a primeira fábrica latino-americana de circuitos integrados e servirá como centro de pesquisa em microeletrônica.

Em mais um exemplo, resultados da pesquisa em linguística computacional estão sendo adotados por grandes empresas de software. Um exemplo é o ReGra, corretor gramatical para a língua portuguesa desenvolvido pelo ICMC-USP em parceria com a Itautec, comprado pela Microsoft e incorporado às ferramentas do Office desde 2000. O CoGrOO, corretor gramatical desenvolvido como software livre no IME-USP, foi incorporado ao Open Office.

Por fim, há iniciativas de sucesso de cooperação academia-indústria, com origem em departamentos de computação. Dessas, merecem menção o Cesar (em Recife) e o Tecnopuc (em Porto Alegre). O primeiro nasceu de uma iniciativa do CIn-UFPE para realizar a transferência de conhecimento em TIC5 entre a universidade e a sociedade. O CIn e o Cesar trabalham também na criação de uma nova geração de empreendedores, incentivando a inovação em empresas. Com isso, reverteram a tendência de migração para o Sul-Sudeste de jovens qualificados. Junto com iniciativas governamentais na região (como o Porto Digital de Pernambuco) e a criação de alguns programas de pós-graduação de ótimo nível (por exemplo, em Fortaleza ou Natal), grande parte da Região Nordeste tem polos importantes de pesquisa e inovação em TIC, não mais podendo ser vista como desfavorecida nessa área.

O Tecnopuc é o parque científico e tecnológico da PUCRS, com empresas e entidades em TIC, eletroeletrônica, energia, física e biotecnologia. O estreitamento das relações da universidade com as empresas localizadas no parque vem diversificando e ampliando pesquisas avançadas em computação. Como reflexo dessas atividades, várias indústrias têm mostrado interesse em absorver mestres e doutores.

Como se reflete no Brasil a tendência mundial de pesquisa multidisciplinar?

 

A MULTIDISCIPLINARIDADE COMO BASE

Muitas das grandes descobertas científicas recentes são resultado do trabalho de equipes multidisciplinares que envolvem cientistas da computação. Essa constatação vem motivando inúmeras iniciativas importantes no Brasil e no mundo, duas delas merecendo destaque - o surgimento da chamada eScience e os Grandes Desafios em Computação propostos pela SBC.

O termo eScience designa pesquisa avançada em computação cujo objetivo é contribuir para acelerar (ou até possibilitar) a pesquisa em todos os domínios - das ciências exatas até as humanas e as artes. A eScience é eminentemente colaborativa, combinando várias linhas da computação a outras áreas do conhecimento. As principais necessidades envolvem a chamada "data-intensive science", em que imensos volumes de dados gerados por observações, experimentos, sensores e equipamentos científicos precisam ser organizados, processados, analisados e visualizados, permitindo simulações, construção de modelos e validação de hipóteses.

Exemplos de iniciativas brasileiras bem-sucedidas em eScience incluem a bioinformática, a geoinformática, a modelagem de clima (por exemplo, no CPTEC-Inpe), sistemas de biodiversidade (na Unicamp) ou linguística computacional. Há, igualmente, vários grupos multidisciplinares envolvendo cientistas da computação dedicados a trabalho com redes de sensores - por exemplo, em monitoramento ambiental (Inpe, LNCC, Ufam, UFMG), gestão de qualidade da água (UFCG, Unifor, USP), ou agricultura (UFMS, Unicamp, USP). Destaca-se também a pesquisa em work-flows científicos (UFRJ, Unicamp) visando apoiar especificação e execução distribuída de experimentos. Exemplos mais recentes da eScience brasileira incluem pesquisas em bioenergia e química computacional.

A proposta de cinco Grandes Desafios de Pesquisa em Computação para o Brasil (2006-2016) (Medeiros, 2008) partiu de uma iniciativa da SBC, envolvendo trinta dos principais pesquisadores brasileiros na área, seguindo um modelo bem-sucedido praticado nos EUA e Europa. Tais desafios abordam alguns dos grandes problemas em aberto em todo o mundo e vêm servindo para oferecer temas de editais de pesquisa do CNPq e da Fapesp e motivar eventos científicos. O recente edital 09/2010 do CNPq teve cerca de 160 projetos multidisciplinares submetidos, indicando o envolvimento da comunidade de pesquisa com tais temas. São eles:

1) gestão da informação em grandes volumes de dados multimídia distribuídos;

2) modelagem computacional de sistemas complexos artificiais, naturais e socioculturais e da interação homem-natureza;

3) impactos para a área da computação da transição do silício para novas tecnologias;

4) acesso participativo e universal do cidadão brasileiro ao conhecimento;

5) desenvolvimento tecnológico de qualidade: sistemas disponíveis, corretos, seguros, escaláveis, persistentes e ubíquos.

Os dois primeiros estão diretamente associados a focos centrais de eScience. O terceiro está ligado ao fato de que novos tipos de computadores, não baseados em tecnologia de silício (como computadores quânticos), exigirão uma revolução em P&D. O quarto desafio aborda principalmente questões de interação homem-computador e a necessidade de permitir a todos acesso ao mundo digital. O quinto trata de questões associadas ao desenvolvimento de software confiável.

Todos exigem cooperação dentro da computação e com várias outras áreas do conhecimento. Cada um deles engloba um grande conjunto de tópicos de pesquisa de ponta. Várias linhas de pesquisa em computação aparecem na descrição de todos esses desafios - algumas das questões a serem abordadas com maior ou menor ênfase em todos eles envolvem redes de computadores, gerenciamento de dados, desenvolvimento de software, projeto de algoritmos e estruturas de dados, design de interfaces e novos dispositivos e arquiteturas de computadores.

O movimento internacional em eScience e a identificação dos Grandes Desafios no Brasil refletem algumas das preocupações que vêm sendo enfrentadas pela área, no mundo. Destacam-se questões de colaboração multidisciplinar, formação de pesquisadores com esse perfil e a necessidade de absorção de doutores pela indústria.

Como tais questões estão sendo tratadas, e quais as tendências no Brasil e no mundo?

 

TENDÊNCIAS

A colaboração multidisciplinar se defronta com uma série de desafios - um dos maiores, a formação de pesquisadores com conhecimento de computação e de algum outro domínio, que possam trabalhar nas duas frentes. Esse é um requisito crescente de inúmeras áreas de pesquisa, no Brasil, a começar pela própria computação, que vem participando cada vez mais de parcerias com outras áreas. Essa demanda vem sendo parcialmente atendida pela criação de novos cursos na graduação - por exemplo, na UFABC ou na USP - e, mais ainda, dentro de projetos de pesquisa.

No entanto, se já dispomos de uma base acadêmica competitiva em computação, com pesquisa e inovação, enfrentamos os mesmos problemas que os países do primeiro mundo: aqui e lá, a demanda crescente por profissionais qualificados, no mercado, não tem sido acompanhada por aumento na procura por cursos de graduação. Não é só o mercado que se ressente da falta de mão-de-obra. Em todo o mundo, os grandes grupos de pesquisa em computação estão começando a sentir os efeitos da diminuição de ingressantes na graduação, que vem se refletindo paulatinamente em queda na procura pela pós-graduação. Nos EUA, por exemplo, o número de PhDs concedidos na área diminuiu em cerca de 7% nos anos 2008 e 2009 (Zweben, 2010). Essa queda é tanto mais marcante se considerarmos que, desde 2000, mais de 50% dos ingressantes em programas de doutorado no EUA são estrangeiros.

Para reverter tal queda, desde meados dos anos 2000, as principais universidades norte-americanas iniciaram grandes modificações nos currículos de graduação em ciência e em engenharia de computação. Tais universidades criaram, inclusive, programas especiais para atrair jovens já no ensino médio. Há, ainda, ações em nível nacional nos EUA para engajar mais jovens em atividades de computação, apoiadas fortemente por políticas de governo. O ensino de computação como ciência (e não como instrumento) vem sendo tratado com a mesma prioridade que o de matemática e de inglês. A razão principal dessa preocupação é que TICs são consideradas estratégicas para impulsionar o progresso científico e tecnológico. A resolução 558/2009 do Congresso americano destaca o papel crucial da ciência da computação na transformação da sociedade e para "permitir inovação em todas as disciplinas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática".

No Brasil, a queda na procura pela gradua-ção já é sentida, embora em menor escala, aos poucos contribuindo para modificar o perfil dos candidatos à pós-graduação. Há diferenças marcantes entre os que buscam o mestrado e os interessados no doutorado, influenciadas por dois fatores: os altos salários no mercado (principalmente nas regiões Sul e Sudeste) e o fato de que as universidades são o grande empregador de recém-doutores na área.

O primeiro fator dificulta a manutenção de alunos em tempo integral no mestrado, ao mesmo tempo em que contribui para atrair candidatos com outras formações, que veem no mestrado uma forma de complementar seu conhecimento e ter acesso a bons salários. Além dos interessados em pesquisa, o mestrado também atrai os que desejam lecionar em cursos que não exigem doutorado do corpo docente. Assim, mesmo havendo queda na demanda pela graduação, continua o interesse, no Brasil, por formação avançada. Isso, aliás, é comprovado pelos números do Poscomp - um exame aplicado pela SBC em todas as regiões do país. Os resultados desse exame são usados pela grande maioria dos programas brasileiros de pós-graduação em computação para subsidiar a seleção dos candidatos. Iniciado em 2000, desde 2003 há entre 5 mil e 6 mil inscritos anualmente para realizar o exame. Desde 2006, também vem sendo oferecido no Peru, resultado de um acordo entre a SBC e a Sociedade Peruana, que nele viu uma forma de permitir avaliação mais adequada, no Brasil, de alunos peruanos.

Se o mestrado é visto por muitos como meio de aperfeiçoamento profissional, o mesmo já não ocorre no doutorado. Como quase só universidades empregam recém-doutores em computação no Brasil, praticamente não há doutorandos que pensem em desenvolver pesquisa em indústrias. Isso é tanto mais preocupante quando se observa, por exemplo, o cenário norte-americano - desde 1990 a indústria daquele país empregou a cada ano entre 30 e 60% dos recém-doutores em computação. No período, exceto entre 2000 e 2004, a indústria sempre empregou mais recém-doutores que as universidades (Zweben, 2010). Já no Brasil, o grande número de concursos para vagas docentes em 2009 e 2010 permitiu absorver os novos doutores, mas esse cenário não deve perdurar.

Os recém-doutores americanos têm vários tipos de demanda do setor privado. Grandes empresas do ramo - como a Microsoft Research, o Google ou a IBM - mantêm centros de pesquisa de primeira linha, com produção significativa de artigos influentes e de patentes. Doutores em computação são também demandados, por exemplo, por indústrias farmacêuticas (em química computacional), ou no setor aeroespacial.

No Brasil, não há essa cultura (fato, aliás, comum a todas as áreas). Um artigo recente (Brito Cruz, 2010) destaca a preocupação com os dados da Pintec (Pesquisa de Inovação Tecnológica) divulgados pelo IBGE, mostrando que o número de pesquisadores que trabalham em empresas no Brasil diminuiu entre 2005 e 2008. Ainda assim, nem todos os pesquisadores têm doutorado. A mesma fonte indica que os principais investidores em pesquisa são as indústrias automotoras e de combustíveis.

Ciência, tecnologia e inovação, principalmente concentradas nas universidades brasileiras, são característica de alguns centros de pesquisa, que também procuram doutores em computação. Destaques no setor público são o Inpe (geoinformática, modelagem computacional, processamento de imagens), o LNCC (modelagem, sistemas de alto desempenho) ou o Cenpes (modelagem, computação gráfica e processamento de imagens). No setor privado os destaques incluem o Google em Belo Horizonte, o CPqD em Campinas e, desde 2010, a IBM (Rio e São Paulo). Finalmente, alguns recém-doutores têm encontrado emprego fora da academia em novas linhas - como bioinformática ou computação forense.

Se quisermos ser competitivos em nível mundial na produção de ciência e tecnologia, há que se modificar o quadro atual, introduzindo-se o ensino da ciência da computação já no ensino médio e incentivando investimento de empresas na criação de ambientes de pesquisa que reconheçam na computação o indispensável terceiro pilar.

 

BIBLIOGRAFIA

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1 Computational Science: Ensuring America´s Competitiveness. PITAC Report to the President, EUA, Junho de 2005. Acesso em: http://www.nitrd.gov/pitac/reports/20050609_computational/computational.pdf.
2 Ver: Relatório de avaliação 2007-2009, Ciência da Computação. Acesso em: http://www.capes.gov.br/images/stories/download/avaliacao/COMPUTACAO_05 mar 10.pdf.
3 Ver: Relatório de avaliação 2007-2009, Ciência da Computação. Acesso em: http://www.capes.gov.br/images/stories/download/avaliacao/COMPUTACAO_05mar 10. pdf.
4 Middleware é uma camada de software intermediária entre aplicações e uma plataforma computacional, facilitando o desenvolvimento dessas aplicações - no caso, entre aplicações para TV digital e a plataforma do receptor.
5 Tecnologias de informação e comunicação.