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Revista USP

versão impressa ISSN 0103-9989

Rev. USP  no.89 São Paulo mar./maio 2011

 

As relações tecnológicas do Brasil com o mundo exterior: passado, presente e perspectivas

 

 

João Furtado

Economista e professor da Escola Politécnica da USP

 

 


RESUMO

Este ensaio apresenta uma reflexão sobre as relações entre a economia brasileira e o mundo exterior numa perspectiva tecnológica. Utiliza para isso as principais dimensões do balanço de pagamentos, procurando explorar as suas relações ao longo do tempo. Ele apoia-se em trabalhos anteriores que desenvolveram os indicadores do balanço de pagamentos tecnológico, mas volta-se para os aspectos conceituais, para as relações entre as várias dimensões e para a compreensão dos processos de mudança. A reflexão produzida apoia-se em evidências de variadas indústrias e atividades econômicas e lança mão de elementos conhecidos da realidade brasileira, o que permite abrir a argumentação e facilitar o enriquecimento da discussão com novas perspectivas para um debate que tem muito a contribuir para o desenvolvimento brasileiro.

Palavras-chave: tecnologia, indústria, economia, realidade brasileira.


ABSTRACT

This article presents a reflection on the relation between Brazilian economy and the world outside under a technological perspective. To do so, it makes uses the main dimensions of the balance of payments, seeking to explore its relations throughout time. It is grounded on previous works which developed the indicators of technological balance of payments, but if focus on the conceptual aspects, on the relations between the many dimensions, and on the understanding of the change process. The reflection is based on supporting documents from diverse industries and economic activities, and makes use of known elements of the Brazilian reality. That enables us to start the argumentation and to enrich the discussion with new perspectives so that we can have a debate which can make a wealth of contribution to the Brazilian development.

Keywords: technology, industry, economy, Brazilian reality.


 

 

Este ensaio toma como ponto de partida os estudos desenvolvidos anteriormente no quadro dos Indicadores de Ciência, Tecnologia e Inovação, um volume editado regularmente pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo1. Nas três últimas edições dessa publicação que a Fapesp oferece à comunidade de ciência, tecnologia e inovação, o escopo do capítulo que trata do balanço de pagamentos tecnológico foi sendo redefinido para ganhar contornos coerentes com a seguinte questão principal: como se descreve, de modo abrangente e sintético, o conjunto de relações de natureza tecnológica que existem entre um país e os demais? Este artigo dá continuidade a essa reflexão, agora com ênfase nos aspectos qualitativos (e não nos indicadores e nos elementos quantitativos). Entende-se que os elementos empíricos (e as estatísticas sistemáticas) são mais bem explorados naquele outro contexto.

O tema principal deste artigo é a discussão sobre as relações - de natureza tecnológica - de uma economia com o mundo exterior. Considerações de ordem geral são feitas, mas a preocupação central, explícita, envolve principalmente a economia brasileira, ou situações que permitam pensar a natureza e as características - muito especiais - de uma economia como a brasileira.

Que características da economia brasileira a tornam um caso especial de desenvolvimento e de relacionamento - tecnológico - com o mundo exterior? Economia continental, com um desenvolvimento fortemente baseado em recursos naturais até meados do século XX2, o Brasil apresentou durante pelo menos meio século uma forte expansão econômica liderada pelo setor industrial, que progressivamente foi tornando menos importante (em termos relativos) o setor primário e as suas exportações. Essa expansão ofereceu um espaço privilegiado para as empresas estrangeiras (multinacionais, sobretudo) de todas as origens. Capitais europeus, estadunidenses e japoneses aqui lançaram bases de sua expansão internacional desde meados dos anos 1950. A forte presença de capitais e empresas de origem estrangeira conviveu desde então com um forte setor empresarial de origem estatal e com uma regulação pública que ajudou, durante vários decênios, a moldar as relações das empresas (de todas as origens) com os fornecedores estrangeiros de tecnologia. O tripé de capitais - privado nacional, privado estrangeiro e estatal - desenvolveu três dinâmicas particulares com relação à tecnologia e ao desenvolvimento. As grandes empresas de origem estrangeira contaram, durante muito tempo, com a suficiência da matriz como fonte segura para o seu protagonismo industrial; e para a liderança que facilmente conquistaram em grande número de setores, que se viu reforçada nos principais períodos de crescimento acelerado3. As empresas privadas nacionais, por seu lado, puderam recorrer à importação (de máquinas, equipamentos) e à contratação de projetos e serviços de assistência técnica para viabilizarem os seus investimentos e ocuparem os novos mercados, em formação pelo crescimento acelerado da indústria e das cidades. As empresas estatais desenvolveram estratégias híbridas, com importação de tecnologia complementada por esforços próprios. Esse quadro variado define um sistema bastante complexo, e nele proliferam ideias e teses variadas sobre o quadro desejável para a tecnologia no Brasil e o seu papel no desenvolvimento. Entre os economistas de formação mais ortodoxa, a visão era de que o Brasil deveria deixar-se guiar pela sua dotação de fatores e atrair capitais e tecnologias. Entre os economistas de convicções mais heterodoxas, a industrialização deveria ser perseguida lançando mão de esforços essencialmente internos, aí incluindo o mercado (interno). O modelo híbrido finalmente alcançado combinou industrialização (e não especialização primária) com ampla entrada de capitais estrangeiros (e não esforços essencialmente autônomos).

 

PROTECIONISMO, CRESCIMENTO E APRENDIZAGEM

Uma das características mais frequentemente destacadas no debate sobre o desenvolvimento tecnológico limitado da economia brasileira (e, sobretudo, da sua indústria de transformação) envolve a sua relação com o protecionismo, quer dizer, com a prevalência de um elevado nível de proteção da produção nacional com relação aos produtos importados. Se para uns o protecionismo é indispensável, para outros ele está na raiz de todos os males. Para aqueles, seus efeitos são secundários perto dos seus benefícios; e para estes ele produz uma distorção incorrigível no sistema econômico. Os defensores incondicionais da proteção dirão que o crescimento econômico e a industrialização dos cinquenta gloriosos (1930-80) demonstram o acerto da escolha, ao passo que os críticos do protecionismo apresentarão como apoio aos seus argumentos as fragilidades e as mazelas do modelo.

A proteção é um ingrediente presente em todos os projetos nacionais de desenvolvimento, desde o pioneiro, inglês. Foi defendida teoricamente como instrumento para o desenvolvimento industrial no início do século XIX, principalmente por List4: ajudado por sua experiência nos Estados Unidos, refletiu sobre o problema do desenvolvimento dos países que, como os reinos alemães, não acompanharam o movimento original da revolução industrial inglesa no século XVIII e sucumbiriam, se nada fizessem, ao imenso poderio do sistema industrial britânico. As suas proposições sobre a proteção contribuíram para a União Aduaneira dos Estados Alemães de 1834 (Zollverein). Essa união aduaneira substituiu os pequenos estados que vieram a compor a nação alemã por um território unificado, com barreiras internas reduzidas e barreiras externas mais elevadas. O binômio representado por um espaço alemão unificado pela remoção das barreiras internas em simultâneo às barreiras externas contra importações é muito frequentemente ignorado pelos defensores incondicionais da proteção, e esse descaso possui efeitos muito importantes sobre o modo como compreendem o funcionamento do sistema e o teor das suas preocupações com relação ao desenvolvimento tecnológico5.

A elevação das barreiras comerciais externas e a remoção das barreiras comerciais internas (entre os estados alemães desde então reunidos no Zollverein) contribuíram para colocar em marcha poderosas forças competitivas, entre empresas com graus de desenvolvimento relativamente mais parecidos do que, por exemplo, o existente entre qualquer empresa de um reino alemão e a sua congênere inglesa. A competição entre os mais iguais pode ser considerada um antídoto contra os elementos estéreis ou mesmo nocivos do protecionismo, mesmo que ocorra a partir de um patamar de desenvolvimento tecnológico e industrial inferior ao que prevalece em outros espaços nacionais ou no âmbito internacional: a dinâmica competitiva é mais importante do que o patamar em que o padrão de produção se encontra em determinado momento. Diferentemente das suas versões extremadas, propugnadas pelos ultraliberais e pelos desenvolvimentistas hiperprotecionistas, a proteção não é um mal em si mesma nem um bem sem efeitos colaterais. A proteção é um ingrediente de um modelo, que pode resultar em diferentes processos, com resultados muito distintos, a depender da sua complexa interação com os demais elementos.

A proteção foi tudo menos um elemento isolado no desenvolvimento alemão. As dores das derrotas para os exércitos napoleônicos e a humilhação que elas representaram para os alemães estão no centro de um projeto de reconstrução e de superação. A criação das estruturas universitárias e de pesquisa científica que representam a maior contribuição da Alemanha às instituições ocidentais faz parte dessa refundação. A proteção tem que ser compreendida nesse conjunto, junto com a importância central da pesquisa científica e do desenvolvimento educacional: a Alemanha introduziu a educação obrigatória muito antes que outros países o tivessem feito (por exemplo, muito antes que a Inglaterra6). O mesmo pode ser dito com relação à educação formal em atividades empresariais (negócios), em contraposição à tradição familiar e à herança que prevaleciam nas empresas inglesas. O resultado desse processo de estruturação de um sistema industrial que tem no protecionismo um ingrediente ativo pode ser apreciado de diferentes modos, mas um de seus componentes tem grande força simbólica: no final do século XIX, entre 1886 e 1900, as seis maiores empresas químicas alemãs requereram quase um milhar de patentes e as suas congêneres inglesas solicitaram menos de uma centena (948 contra 86)7:

"Quando as famílias dos fundadores das empresas alemãs de pigmentos transferiram a responsabilidade dos negócios para a primeira geração de administradores profissionais, eles selecionaram químicos para serem dirigentes, porque pensaram que dirigentes com treinamento científico estariam em melhor posição para compreender os riscos e as oportunidades enfrentados pelas empresas em crescimento. A visão racional de dirigentes competentes em termos técnicos poderia infundir na organização toda práticas empresariais racionais com o propósito de assegurar o crescimento e a rentabilidade das empresas".

A "superação" da condição de atraso envolveu a mobilização de diversos fatores, e todos eles contribuíram para que o modelo deliberadamente protecionista evitasse os seus eventuais efeitos nocivos.

A Alemanha unificada do século XIX não é o único exemplo de proteção externa como ingrediente - central, diga-se - de um modelo dinâmico, capaz de estruturar um tecido econômico rico, diversificado e muito competitivo, em condições de assegurar ao mesmo tempo elevado índice de desenvolvimento e capacidade de enfrentamento da concorrência em outros mercados. Os Estados Unidos praticaram políticas fortemente protecionistas durante uma grande parte do século XIX, até depois que sua força industrial se afirmasse de modo indiscutível8. O Japão, que também recorreu ao protecionismo durante longo período, desenvolveu uma indústria automobilística que é amplamente considerada como muito competitiva, quiçá a mais competitiva entre todas. Na origem desse processo de constituição está um hiperfechamento, que incluiu não apenas a barreira comercial intransponível para os produtos importados como a literal expulsão das empresas montadoras de origem estadunidense9. Nem por isso o mercado fechado e desprovido de investimentos externos impediu que se estabelecesse uma competição muito intensa e com resultados muito efetivos, como comprova a ascensão da indústria automobilística japonesa à condição de liderança a partir dos anos 1980. Proteção externa e competitividade podem coadunar-se, mas também podem produzir resultados muito pouco saudáveis, como se sabe.

A proteção externa da economia brasileira possui três características que a tornaram um ingrediente com diversos efeitos adversos. Intensa, abrangente, duradoura10, o aparato de proteção esteve associado a um elevado dinamismo econômico, com crescimento intenso e prolongado. Essas altas taxas de crescimento dos mercados, alimentadas pelo processo de substituição de importações, permitiram que as empresas encontrassem sistematicamente na captura de novas fatias de mercado (antes ocupadas por importações) e em outras atividades (diversificação) escoamento para os seus lucros e para o seu potencial de expansão.

As forças expansivas do sistema econômico capitalista possuem no ciclo da acumulação ampliada o seu elemento básico: ao final de cada ciclo de produção, a empresa (cada empresa) tende a ter mais recursos (e mais capital) do que tinha no início. Para onde se dirigem esses capitais adicionais? Para a acumulação, para a expansão da produção, para novos investimentos. Se os mercados não crescem na mesma proporção, se o potencial de acumulação das empresas excede o ritmo de crescimento do mercado, é necessário encontrar novas áreas para investir esse excedente. Historicamente, o acirramento da concorrência, a diversificação e a internacionalização das empresas cumpriram esse papel. A diversificação e a internacionalização são saídas apenas temporárias para esse mal do excesso11, pois cedo ou tarde a diversificação simples (expansão para mercados de produtos que já existem) e a internacionalização (expansão para outros territórios) também alcançam os seus limites. O acirramento da concorrência, a luta pelos espaços (restritos) de mercado, leva à redução das margens de lucro e conduziria inevitavelmente a uma redução das taxas de lucro se tudo permanecesse constante.

É nesse ponto que entra em campo a mais poderosa das forças da concorrência capitalista - aquilo a que os economistas mais importantes, desde Smith, e possivelmente com a exceção única de Keynes, dedicaram atenção, mesmo que o tenham feito sob diferentes denominações. Smith destacou a divisão do trabalho como força de transformação12. Marx chamou mais-valia relativa aos lucros advindos das mudanças que estão no âmago da concorrência dos capitalistas pelos lucros extraordinários e isso colocou em marcha as forças do progresso técnico e das transformações que fizeram do capitalismo, na sua visão, a mais poderosa força de produção e acumulação de riquezas. Meio século mais tarde, foi Schumpeter quem colocou a criação de novos produtos, processos, mercados e formas de organização da vida econômica como núcleo dinâmico do sistema, dando-lhe um nome próprio - inovação13.

 

O MODELO BRASILEIRO: SUBSTITUIÇÃO DE IMPORTAÇÕES E CRESCIMENTO ACELERADO

O modelo de substituição de importações no Brasil (e na América Latina) permitiu que a indústria ocupasse gradativamente o novo terreno oferecido pelo alargamento da proteção. Sempre que um item importado entrava na pauta dos candidatos a substituição, a empresa postulante a fazê-lo podia imediatamente solicitar que sua importação fosse barrada. Assim, a sobreacumulação, esse fenômeno que no sistema econômico capitalista costuma produzir acirramento de concorrência ou extroversão, foi evitada pela criação sucessiva de novos espaços de aplicação dos capitais, que assim escapavam de ser excessivos e ademais estavam protegidos. Esse processo esteve associado a um crescimento industrial extremamente acelerado, que propiciou oportunidades para a expansão do capital privado nacional, das empresas de origem estrangeira, sem deixar de oferecer um papel de relevo às empresas de capital estatal. A substituição de importações, esse processo que já foi definido como a redução da dependência externa e a mudança na natureza dessa dependência14, significou também um alívio forte e duradouro das pressões competitivas que a acumulação tende a exercer sobre as empresas15.

Foi nesse contexto que as empresas puderam adotar - de modo facultativo - práticas tecnológicas mais passivas e menos incisivas. O termo é empregado aqui em oposição à necessidade, imposta pela concorrência, de construir estratégias tecnológicas mais robustas, dotadas de recursos próprios, de pessoal dedicado, de visões de longo prazo construídas com apoio de ativos exclusivos. Todas as empresas procuraram, é verdade, meios de produção mais modernos, normalmente representados por máquinas e equipamentos importados. Mas aí se esgota o processo tecnológico ditado pelos padrões competitivos: a concorrência não exige mais16. As iniciativas que vão além desse padrão são, por isso, facultativas.

É assim que é possível encontrar, no mesmo sistema econômico, um núcleo de empresas estatais que até meados dos anos 1980 possuíam estratégias muito ativas de aquisição e de desenvolvimento tecnológico, ao lado de empresas estrangeiras e empresas nacionais de todos os tipos e portes, que se contentavam, no mais das vezes, em recorrer à fonte original de tecnologia: a matriz (no caso das empresas de origem estrangeira), ou os fornecedores de bens de capital e de tecnologia (no caso das empresas nacionais). Só em circunstâncias excepcionais é que essas empresas foram levadas a desenvolver esforços próprios para além do aprendizado incremental e relativamente modesto a partir do "pacote" recebido ou adquirido. Mesmo empresas "de tecnologia" ou reconhecidas como empresas com alicerces tecnológicos próprios são compradoras de tecnologias de terceiros; e isso vale no Brasil e no mundo. A diferença não está em "depender" de outros, está em desenvolver relações de compra e venda e de venda e compra, com graus de assimetria incomparavelmente menores do que ocorre quando as empresas não possuem capacidades próprias.

Entre as circunstâncias excepcionais que motivaram esse comportamento fora da norma, é possível tipificar algumas situações. Em meados dos anos 1960, em meio à fase recessiva que se seguiu à forte expansão industrial dos anos 1950, algumas empresas brasileiras descobriram que os seus contratos de fornecimento de tecnologia lhes vedavam o acesso aos mercados externos, reservados aos licenciadores. Esse fato, em alguns casos, ocasionou esforços genuínos de desenvolvimento de competências, de modo a propiciar, no futuro, autonomia com relação à sua estratégia comercial.

Destaque-se, nesse caso, que não foi o padrão competitivo do mercado interno que ocasionou esse movimento, mas as restrições comerciais impostas externamente17. Durante as décadas de 1970 e 1980, empresas que enfrentaram essa situação foram levadas a desenvolver estratégias de crescente autonomia tecnológica. Algumas poucas empresas do setor químico, nascidas no bojo dos grandes projetos petroquímicos brasileiros (Mauá, Camaçari, Triunfo), foram também levadas a desenvolver capacidade tecnológica própria, para evitar a dependência, que consideravam excessiva, com relação aos seus detentores originais de tecnologia18.

Uma segunda circunstância motivou comportamentos tecnológicos diferenciados com relação ao padrão que constituiu a norma no setor industrial: considerações de caráter estratégico, quer dizer, extraeconômicas, frequentemente motivadas com a indução exercida pelo setor estatal ou por círculos governamentais. Foi esse o caso, por exemplo, de uma empresa siderúrgica com vínculos com o setor nuclear19. Várias outras empresas nessa condição desenvolveram estratégias tecnológicas relativamente autônomas. Os seus limites, entretanto, estiveram condicionados pela própria estratégia do demandante estatal e raramente puderam desdobrar-se para mercados mais amplos.

Existem também filiais de empresas estrangeiras que ao longo da sua trajetória desenvolveram, com graus variados, alguma autonomia tecnológica localmente. Essa terá sido, muitas vezes, uma alternativa residual (second best), frente à impossibilidade de simplesmente adotarem a estratégia de divisão de trabalho típica com a matriz. Foi esse o caso de muitas empresas em setores com produção diversificada e dificuldades para realizar importações de modo sistemático (sobretudo quando, além das barreiras tarifárias, vigorava também o impedimento das licenças prévias). Muitas empresas do setor químico possuíam no Brasil unidades dotadas de capacidades produtivas e capacitações tecnológicas que se tornaram necessárias em razão do regime comercial vigente. Várias delas, no entanto, desarticularam tão logo puderam (no início dos anos 1990) esse sistema que era, do ponto de vista empresarial privado, extremamente ineficaz, embora contribuísse para um certo nível de competências (e custos mais elevados) no sistema industrial20.

O sucesso empresarial excepcional de empresas com fortes componentes tecnológicos, como a Embraer e a Petrobras, constitui uma oportunidade para refletir sobre os fatores que os determinaram ou pelo menos sobre as circunstâncias que os propiciaram. O primeiro elemento a considerar é que ambas as empresas nasceram na esfera estatal e muito mais marcadas por elementos estratégicos do que exclusivamente sob determinantes econômicos. Essa afirmação vale tanto para os fatores do mercado para os seus produtos como dos acionistas para os seus capitais. A fundação de ambas as empresas é muito posterior às ideias e aos debates que culminaram em sua criação e na orientação que vieram a ter. No caso da Embraer, em que pese a sua fundação oficial no final dos anos 1960, a sua origem verdadeira está nos anos 1930, ou mesmo antes. O primeiro Congresso Brasileiro da Aeronáutica, que foi realizado em 1934, teve como elemento deflagrador uma reunião realizada alguns anos antes (em 1928), quando se iniciou a reflexão estratégica sobre a necessidade de contar o Brasil com meios de transporte velozes e capazes de cobrir o vasto território nacional. A essa questão aparentemente singela seguiram-se intensos debates e deles emergiram, como sói acontecer no Brasil ao longo do século XX, dois grandes partidos (por assim dizer), duas correntes de pensamento. De um lado, todos aqueles que sustentavam a necessidade imperiosa de dotar o Brasil de uma indústria aeronáutica, de fazê-lo de modo rápido e seguro, para o que defendiam recorrer à atração de investimentos de empresa(s) estrangeira(s). A esse grupo se opunha, do outro lado, um grupo que insistiu na tese de dotar o Brasil de uma indústria autônoma, desenvolvida a partir de capitais brasileiros, capaz de criar e acumular conhecimentos e competências. As duas teses e suas estratégias puderam conviver, nesse caso, porque inexistia qualquer pressão de demanda, do mercado, a impor a solução mais viável no curto prazo. Foi ela que se impôs em muitas outras oportunidades: na implantação da indústria automobilística, nos anos 1950; na transição do padrão de televisão em preto e branco para o padrão em cores, nos anos 1970; e na transição para a telefonia móvel, nos anos 1990. Em cada um desses três casos, o mercado, a pressão da demanda, ou simplesmente o vislumbre, pelos atores relevantes, de uma demanda a ser criada e satisfeita, levou à adoção da solução mais pronta que propiciava a resposta mais imediata. O padrão industrial brasileiro subordinou muitas vezes o desenvolvimento da produção aos ditames do consumo e da disponibilidade da produção doméstica no mais curto intervalo possível; e raramente fez o inverso.

Em meados dos anos 1980, antes que as privatizações europeias alcançassem boa parte dos sistemas de radiodifusão e canais privados passassem a veicular publicidade em padrões que se aproximam dos vigentes nos Estados Unidos, o coeficiente de publicidade e propaganda com relação ao PIB era, em todos os países europeus, inferior ao que se verificava no Brasil. Já o índice de pesquisa e desenvolvimento com relação ao PIB, como é amplamente sabido, é muito inferior no Brasil do que é em quase todos os países europeus, com exceções pontuais. O padrão competitivo da economia brasileira é muito mais intensivo em sedução e persuasão dos consumidores pela via da publicidade do que pela via do desenvolvimento de soluções técnicas e tecnológicas mais avançadas e dependentes de esforços genuínos. É possível que esse padrão esteja mudando com o advento de grandes contingentes de consumidores regulares, mas talvez seja possível sustentar que houve sempre consumidores para quem o preço era a única consideração e outros para quem o preço não era uma consideração relevante.

O caso da indústria farmacêutica brasileira é muito eloquente sobre a importância relativa dos ativos tecnológicos em comparação com os comerciais. Em que pese o esforço muito modesto (quiçá nulo, em muitos casos) das empresas nacionais com relação ao desenvolvimento de novos produtos, e mesmo com relação ao desenvolvimento de capacidades tecnológicas na produção de farmoquímicos, elas conseguiram manter sempre posições de mercado muito sólidas e em diversos momentos apresentaram excelentes indicadores de desempenho. Valeram-se de capacidades comerciais e de uma percepção muito singular dos aparatos institucionais (por exemplo, os regulatórios; ou o papel das farmácias junto à população com acesso limitado) para constituírem ativos que sistematicamente se tornam valiosos para as empresas internacionais com ativos tecnológicos, sejam aquelas que desejam entrar no mercado, ou estejam já presentes21. Mesmo num setor "de tecnologia", é possível que os ativos tecnológicos ocupem posições de dependência com relação aos comerciais. Muitas empresas de origem estrangeira detentoras de ativos tecnológicos relevantes optaram por associar-se (por diferentes mecanismos) a empresas nacionais com escassos recursos tecnológicos como forma de verem valorizados os seus produtos e tecnologias no mercado brasileiro.

Embora muito distinto da Embraer, o caso da Petrobras enseja também reflexões sobre o padrão tecnológico e sobre os modos de relacionamento da economia nacional com o mundo exterior. Fundada, como se sabe, no bojo de lutas intensas no campo das ideias sobre o desenvolvimento brasileiro e as suas possibilidades e necessidades, a Petrobras foi um marco no desenvolvimento de diversas atividades - e entre elas cabe destacar, pela sua importância para o padrão tecnológico e industrial, o setor de equipamentos, ou de "bens de capital". As trajetórias tão singulares dessas duas empresas de destaque no mundo brasileiro da tecnologia são reveladoras precisamente da relativa desimportância dessa dimensão durante um longo período da industrialização brasileira.

 

AS RELAÇÕES EXTERNAS E AS RELAÇÕES EXTERNAS DE CUNHO TECNOLÓGICO

As relações externas de caráter tecnológico da economia brasileira estão marcadas por esse processo histórico de desenvolvimento do sistema econômico e do setor industrial. A despeito de suscitar alguma contrariedade e polêmica, é possível sustentar que a tecnologia nunca ocupou o centro do sistema econômico e das estratégias empresariais, com exceções pontuais (algumas já mencionadas, a título de ilustração dos argumentos). O modelo de desenvolvimento construído propiciou que assim fosse. A acumulação foi acelerada pelo subsídio à importação de bens de capital durante um período inicial, reforçada pelo papel desempenhado pelas empresas estatais e fortemente estimulada pelo concurso do capital estrangeiro. Aliás, está nesse recurso ao capital estrangeiro uma dimensão relevante do caráter marginal do desenvolvimento tecnológico: tendo ocupado desde meados dos anos 1950 as principais posições dinâmicas do sistema industrial brasileiro com seus pacotes e fluxos favorecidos pelo acesso seguro à matriz, as empresas de origem estrangeira contribuíram para consolidar padrões de desempenho industrial relativamente elevados, mas com recurso sistemático a fontes externas de tecnologia. Com isso, elas deixaram, em setores dinâmicos tecnologicamente, de contribuir para a implantação de padrões mais elevados de esforço tecnológico local, para a formação de pesquisadores e de um mercado de trabalho de engenheiros, tecnólogos e cientistas nas empresas, assim como para o desenvolvimento de mecanismos de incorporação de diálogo entre as empresas e as instituições formadoras de recursos humanos e produtoras de conhecimento científico. O quadro e a atitude pouco favoráveis à pesquisa científica e tecnológica nas empresas, de um modelo que pôde recorrer à importação de máquinas como "solução tecnológica", beneficiaram-se muito pouco da onda de investimentos externos que ganhou impulso nos anos 1950 e foi retomado depois nos anos 1970.

As empresas privadas nacionais que tradicionalmente confiaram na importação de máquinas e equipamentos também recorreram a licenciamentos e transferências de tecnologia em projetos que ultrapassavam os contornos passíveis de atendimento com a máquina ou conjunto de máquinas importados. Nas suas negociações com os fornecedores de tecnologia (em que pesem os termos pouco rigorosos que expressam essa relação tão complexa), as empresas brasileiras foram assistidas e apoiadas por legislação pertinente e contaram com apoio negocial do Inpi, com o propósito declarado de evitar que as assimetrias típicas desse mercado pudessem acarretar maiores perdas (preços excessivos, transferência deliberadamente truncada, cláusulas restritivas)22.

Cada uma dessas condições enseja algumas relações típicas. Empresas privadas nacionais são modestas ou pífias demandantes de tecnologia, de um modo geral23. As suas demandas (em que pesem as necessidades muito superiores) resumem-se quase sempre à compra de máquinas e equipamentos. Embora venham descobrindo mais recentemente as oportunidades oferecidas pelo mundo da tecnologia e da inovação, elas ainda são demandantes pontuais e episódicas. No vértice da pirâmide, empresas brasileiras que desenvolveram competências para o aprendizado e consolidaram capacitações sólidas e esforços consistentes vêm invertendo a sua relação de dependência e o caráter unilateral dos fluxos de tecnologia, tornando-se progressivamente vendedoras e licenciadoras de tecnologias próprias. Até mesmo pela sua origem nacional e pela facilidade com que conseguem jogar de modo mais equilibrado o jogo da transferência, essas empresas conseguem desenvolver boas parcerias em transferências com países em desenvolvimento.

Empresas estatais foram, no passado, demandantes e desenvolvedoras de tecnologia em graus muito variados e com resultados igualmente diversos. Puderam fazê-lo por um misto de interesse econômico e considerações de cunho dito estratégico. O termo estratégico é, quase sempre, um escape para a inexistência de razões objetivas e claramente definidas para justificar escolhas, sobretudo quando os seus custos são elevados e os benefícios remotos (mesmo que se afigurem promissores). Sempre que o pêndulo desse binômio econômico-estratégico pendeu excessivamente para o segundo termo, o resultado foi a perda de consistência da estratégia e da própria área de desenvolvimento tecnológico. Os custos econômicos de uma opção que promete mas não entrega na mesma proporção e velocidade das expectativas criadas terminam por desgastar-se frente às partes relacionadas (os chamados stake-holders).

Existem diversos trade-offs entre decisões com custos e benefícios de curto e de longo prazo. Esses trade-offs são especialmente relevantes quando envolvem decisões sobre a escolha de caminhos mais fáceis ou mais difíceis (no curto prazo) com resultados imediatos ou diferidos.

O investimento feito na Imperial Estação Agronômica de Campinas (1887), que precedeu o Instituto Agronômico do Estado de São Paulo (1897) e o Instituto Agronômico de Campinas (que ainda mantém a denominação), foi certamente um custo econômico por um certo tempo (e portanto um ônus social, pelos gastos alternativos que deixaram de ser feitos), antes que produzisse efeitos positivos para a cafeicultura e a agricultura de São Paulo e do Brasil. Quando os conhecimentos e as competências começaram a maturar, eles passaram a participar de um fluxo regular de riquezas que já dura mais de um século e se nutre e renova pelos vínculos que estabelece com o campo e com a ciência.

Meio século mais tarde o Brasil iniciou os primeiros passos que culminariam na criação do seu setor aeronáutico24: a escola de engenharia, o centro tecnológico e depois a fabricação industrial. Os aviões que hoje representam o principal produto de "alta tecnologia" das exportações brasileiras foram iniciados com pequenos investimentos e com um esforço de aquisição internacional de conhecimentos, competências e tecnologia. A atração dos cérebros originais, entre os quais o professor Richard H. Smith, que fora chefe do Departamento de Aeronáutica do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), contou com diversas colaborações, entre elas a indicação do seu nome por um estudante brasileiro naquela instituição (major-aviador Oswaldo Nascimento Leal). A conjunção de circunstâncias favoráveis dificilmente pode ser creditada ao acaso ou a sucessivos golpes de sorte: pessoas certas nos lugares certos também são uma construção laboriosa que o acaso dificilmente produz, mesmo quando dela se beneficia. O CTA - Centro Técnico da Aeronáutica e os seus dois alicerces (ITA - Instituto Tecnológico da Aeronáutica e IPD - Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento) são investimentos de longo prazo de maturação que se iniciam com a semente da importação de conhecimentos. Ela está presente na ida de pessoas para adquirirem conhecimentos e competências (Oswaldo Nascimento Leal) e na atração de cérebros e competências de planejamento e gestão (Richard Smith).

O balanço de pagamentos tecnológico retrata o conjunto de relações de natureza tecnológica entre uma economia e o mundo externo. Os cafés que o Brasil exporta há um século para o mundo todo possuem elementos do conhecimento que o país vem criando desde pelo menos a criação do instituto de pesquisa agrícola de Campinas; e uma parte desse conhecimento é importada - nas revistas de botânica e fisiologia vegetal, nas bolsas dos estudantes que foram ao mundo aprender coisas novas, nos cientistas que o Brasil atraiu de vários países, nos equipamentos e insumos de pesquisa que importamos de tantos lugares, nas visitas técnicas, congressos e missões internacionais que realizamos... Os aviões que o Brasil exporta hoje possuem frações das visitas técnicas de Montenegro aos Estados Unidos nos anos 1940... Nenhuma relação tecnológica se esgota no seu instante, não é uma compra sem história, sem passado e sem futuro. O balanço de pagamentos tecnológico ajuda a compreender esses fluxos, que envolvem defasagens intrínsecas e efeitos amplificados.

Quando o Brasil decidiu ter aviões, houve momentos de indecisão entre os caminhos que poderiam ser escolhidos. Entre a fábrica importada e o desenvolvimento de conhecimento havia trade-offs de várias naturezas. Importar a fábrica (e o fabricante) seria possivelmente mais seguro, na opinião de muitos. Os resultados - a fabricação de aviões - seriam alcançados mais rapidamente. Criar - ou mesmo apenas reunir - competências científicas, tecnológicas, industriais, empresariais e mercadológicas levaria (e de fato levou) muito tempo e os seus resultados seriam incertos num horizonte temporal bastante longo. Quando a crise econômica (e fiscal) dos anos 1980 colheu o Brasil em rota de investimentos por maturar, críticas exacerbadas se voltaram contra esses projetos ditos faraônicos e sem sentido. A perseverança na escolha de um caminho permitiu que mais de meio século depois dos investimentos pioneiros tenham começado a surgir os resultados mais tangíveis do processo. Antes disso se formaram pessoas e conhecimentos foram desenvolvidos e incorporados a outras atividades e setores econômicos, numa instituição que até os dias de hoje é amplamente reconhecida por sua excelência.

No plano dos fluxos de entrada e de saída de divisas relacionados com a importação e a exportação de elementos de natureza tecnológica, houve durante muitos anos uma sucessão de modestas saídas; e, junto com os investimentos que foram realizados ano após ano nas instituições, propiciaram a consolidação dos institutos e a emergência da empresa aeronáutica. Os investimentos externos (ou as compras externas de conhecimento) por intermédio da ida de estudantes, pesquisadores e profissionais brasileiros ao exterior redundaram no mais sólido e diferenciado fluxo de exportações, com elevada intensidade de valor agregado25. Quando se aplica conhecimento a uma atividade, é possível que essa atividade apresente um aumento de produtividade e de rendimento no mercado, no primeiro caso pelo aumento da eficiência produtiva (menos insumos por unidade de produto), no segundo, pelo aumento do preço obtido (margem superior pela mesma quantidade de insumos).

A escolha brasileira com relação aos automóveis foi distinta. O processo de montagem e progressiva fabricação evoluía a passos lentos e, em meados dos anos 1950, escolheu-se acelerar a nacionalização da fabricação e para isso capitais e empresas de capital estrangeiro foram atraídos26.

O salto da produção ocorre de modo rápido, com a nacionalização de insumos, peças, partes, componentes e montagem. A transferência de capitais e capacidades industriais e empresariais elevou o patamar de produção e de competência, mas a trajetória encetada marginalizou os esforços próprios em favor de um complexo automobilístico com presença dominante de empresas de capital estrangeiro. Os capitais que ingressaram para essa finalidade expandiram-se e ensejam, desde então, uma remuneração (e eventualmente remessas) progressivamente maiores, pois a base de sua incidência cresceu.

Os modelos industriais automobilístico e aeronáutico propiciam reflexões sobre as suas diferentes trajetórias e sobre as razões de tamanha divergência. Em um caso, o investimento em aprendizagem foi possível pelo sentido estratégico atribuído à atividade, que no outro caso foi considerado um produto comercial menos sensível. Ocorreu diferentemente em outras experiências históricas: além do caso japonês, já mencionado, também a Coreia do Sul adiou sucessivamente a implantação de uma indústria automobilística até ter alcançado um nível de desenvolvimento empresarial e industrial autônomo suficiente para negociar com as empresas estrangeiras acordos satisfatórios e de absorver de modo efetivo as transferências de tecnologia envolvidas em um produto complexo com relação ao qual não possuía experiência anterior27.

Sempre que a pressão de mercado expôs a trajetória de aprendizagem da indústria brasileira à necessidade de alcançar resultados em intervalo de tempo curto, o que se viu foi uma retração das empresas de capital nacional e o avanço decidido das empresas de origem estrangeira. Foi assim com a indústria automobilística (nos anos 1950), foi assim com a indústria de receptores de televisão (anos 1970) e foi assim com as empresas de equipamentos de telecomunicações (nos anos 1990). Mas a reserva de mercado para empresas nacionais não se mostrou, em outras ocasiões, instrumento suficiente para assegurar os esforços e os resultados almejados28. O debate sobre as razões dessa trajetória dominante na maior parte das atividades industriais caracterizadas por forte dinamismo tecnológico não está encerrado, mas duas hipóteses explicativas podem ser identificadas. A primeira indica um desenvolvimento tecnológico insuficiente dessas empresas e a sua relativa incapacidade de acompanharem - de modo competitivo - o desenvolvimento da fronteira internacional ou simplesmente o alcance de seus patamares de desenvolvimento tecnológico, industrial e comercial. A segunda sustenta a necessidade de contar com instituições e políticas adequadas, dirigidas para a consecução de objetivos claramente definidos e perseguidos de modo consistente. Na matriz teórica da primeira explicação é comum considerar-se que a proteção resvalou para o protecionismo e que este assumiu um caráter frívolo29 ou tornou-se uma ação deliberadamente rentista (rent-seeking)30.

Proteção resvala inexoravelmente em protecionismo frívolo ou ação deliberadamente rentista? Nem a experiência internacional, nem a experiência brasileira permitem essa afirmação. A realidade oferece apoios - circunstanciais - a ambas as afirmações. A produção agrícola brasileira sustenta há muito tempo um nível de competitividade crescente. O Brasil sustenta a posição de maior produtor mundial de café e permanece como grande exportador há mais de um século. Ao café juntaram-se o suco de laranja, a soja e as carnes, com níveis de competitividade que mobilizam os aparatos de proteção de vários países (desenvolvidos e com tradição nessas atividades). O caso mais eloquente é o do açúcar e do etanol, em que a competitividade brasileira alcança níveis extremamente elevados e ameaça a produção doméstica de muitos países. Todas essas são atividades agrícolas, pode-se argumentar: possuem vantagens iniciais ("naturais", ao menos pelo preço de um dos fatores) e não representam o núcleo do problema da competitividade, que se dá em bases industriais. Ademais, nessas atividades, coube a um ator extraempresarial a função de realizar os esforços que criam progresso técnico.

O Brasil é competitivo também na produção de aço e em vários tipos de máquinas e equipamentos. Construiu essa competitividade ainda sob fechamento, com investimentos apoiados por recursos públicos e voltados inicialmente para o mercado doméstico. A extroversão veio depois, de uma especialização que revelou capacidade de ir além do atendimento do mercado doméstico. Em todos esses casos, os produtos e as atividades industriais possuem uma densidade tecnológica relativamente modesta e o seu horizonte desloca-se de modo relativamente lento. A maior parte dos setores metal-mecânicos em que o Brasil ostenta competitividade internacional encaixa-se nessa categorização31.

 

AS RELAÇÕES EXTERNAS DE CUNHO TECNOLÓGICO E O DESENVOLVIMENTO DE COMPETITIVIDADE

A economia brasileira apresenta relações tecnológicas variadas com o mundo exterior, produto das suas trajetórias históricas de desenvolvimento. A industrialização e o modo que assumiu, com participação relevante de empresas de capital estrangeiro e um interesse modesto das empresas nacionais por esforços tecnológicos próprios, ajudaram a moldar as relações entre o Brasil e os demais países nesse quesito. Por um lado, a internalização de capacidades industriais e a competição entre as empresas apoiaram-se bastante na importação de máquinas e equipamentos, com apoio da assistência técnica dos fornecedores. Por outro lado, as empresas de capital estrangeiro puderam estabelecer uma clara supremacia industrial e tecnológica recorrendo à fonte segura da sua matriz e reproduzindo localmente as suas posições relativas do cenário internacional. Experiências tecnológicas diferenciadas foram entabuladas sobretudo pelas empresas estatais, em diferentes contextos: pesquisa agrícola (Institutos Agronômicos, Embrapa), Petrobras, Embraer, Programa Nuclear, Pesquisas Espaciais, Proálcool são exemplos de esforços conduzidos ou patrocinados pelo Estado.

Vistas em retrospectiva, várias das escolhas produziram efeitos que nem sempre foram antecipados. A Petrobras ajudou a construir um setor de bens de capital relevante desde os anos 1950, mas sem projeção internacional digna de maior registro. É possível que essa experiência possa suscitar reflexões sobre a nova onda de investimentos que se avizinha: a mera criação de um setor fornecedor para a Petrobras e o setor de petróleo no Brasil poderá contribuir para criar uma indústria dinâmica e com projeção internacional? A atração, motivada pelos investimentos em curso e sobretudo os projetados, bastará para criar um setor industrial (e de serviços associados) competitivo e capaz de alçar a indústria brasileira a um novo patamar de capacitações, competitividade e desenvolvimento?

Pelo mesmo caminho das preocupações com a nacionalização da produção (embora o termo mais adequado pudesse ser territorialização ou internalização), a indústria automobilística alcançou um patamar elevado de produção e um certo grau de sofisticação dos processos e dos produtos. Apesar disso, a sua balança comercial não se apresenta hoje tão robusta e - mais grave - continua dependente de uma tarifa externa muito elevada. A base ampliada do comércio regional e a divisão de trabalho com a indústria argentina no âmbito do Mercosul ajudaram a consolidar uma atividade de grande importância e impactos plurais, mas de conteúdo tecnológico ainda muito distante do que seria esperável depois de mais de meio século de produção local por empresas que lideraram por tanto tempo o oligopólio automobilístico mundial, secundadas por entrantes mais recentes. Indícios recentes parecem apontar para um reforço das equipes locais de engenharia das empresas estabelecidas, mas o termo "pesquisa" do trinômio PD&I está ainda longe de ter uma expressão mais significativa. Isso será tão mais importante quando se considerar que a indústria automobilística parece estar no advento de uma transição motivada pela energia. Embora tenha contribuído durante muito tempo para substituir importações, o setor não parece preparado para participar de modo ativo do duplo esforço que se avizinha - combater o avanço muito agressivo da indústria chinesa e indiana e construir uma posição sólida na nova indústria automobilística em gestação.

Por um caminho inteiramente distinto, sem preocupações tão estritas com relação ao conteúdo nacional da produção, partindo mais do elemento intangível do que da produção material, o setor aeronáutico alcançou uma projeção internacional a partir de um prolongado esforço de capacitação. É impossível afirmar que a exportação de aviões é o principal resultado daquele esforço de capacitação tecnológica iniciado há tanto tempo. Sucessivas gerações de engenheiros, com sólida formação científica e tecnológica, preocupados com as trajetórias de desenvolvimento da indústria e com a tecnologia, são um coproduto de importância incomensurável.

Uma das lições que a perspectiva adotada neste ensaio propicia consiste em considerar de modo mais efetivo o tempo e os seus efeitos. Investimentos tecnológicos são, por sua natureza, mais difíceis de construir do que investimentos em capacidades de produção, mormente quando os elementos tangíveis dos processos e produtos estabelecidos estão disponíveis. Demorou muito mais tempo para construir uma indústria aeronáutica do que a automobilística, mas uma e outra possuem trajetórias muito distintas. Esta baseou-se na importação de máquinas, equipamentos, tecnologias, projetos e know-how e aquela na construção dos elementos de conhecimento e só progressivamente nas suas derivações tangíveis.

Esses dois caminhos exemplificam escolhas que a sociedade brasileira vem fazendo há muito tempo e que já foram debatidas, com diferentes matizes e conotações, ao longo da sua história, inclusive da história recente, desde o início dos anos 1990. Por detrás dessas escolhas há forças sociais e projetos de nação muito diferentes. Um dos elementos que parece desempenhar um papel relevante, mas não tem sido destacado de modo suficiente, é o consumo e a pressão do consumo mais imediato, da disponibilidade dos "bens". Esse elemento enseja um trade-off evidente: o desenvolvimento de uma indústria para atender um mercado é um processo que leva tempo e tem incertezas intrínsecas ao longo da sua trajetória. Por isso, é sempre mais fácil recorrer a soluções prontas. Mais fácil, mas também menos produtivo, ensejando um leque inferior de efeitos dinâmicos. E uma vez adotado um pacote industrial pronto, é evidente que as possibilidades de aprendizado e de diferenciação das soluções reduzem-se de modo substancial.

O Brasil encontra-se numa encruzilhada neste terreno - não apenas o das tecnologias, mas o das escolhas da sociedade. O crescimento acelerado dos últimos anos enseja uma oportunidade de prosseguimento de um modelo industrial e tecnológico que se encontra, em muitos aspectos, numa fase de auge e esgotamento. Muito mais do que elevar as capacidades de produção, é tarefa do desenvolvimento industrial brasileiro construir a transição para uma nova fase. Mais do que perseguir a miragem das altas tecnologias com liderança consolidada (como a eletrônica e farmacêutica), é necessário construir por todos os lados ligações dinâmicas da produção com a tecnologia, sustentando-os em padrões contemporâneos e emergentes. Aparece aqui uma ambiguidade que será necessário equacionar: o petróleo brasileiro abundante emerge de forma coetânea com a transição da economia mundial para uma economia mais sustentável, com peso destacado nas energias e nas matérias-primas renováveis. Visivelmente, o Brasil possui um veículo mais poderoso para construir essa trajetória da exploração do petróleo em condições de grande dificuldade tecnológica e operacional do que para avançar em direção aos renováveis. A capacitação tecnológica (e industrial) da estatal de petróleo é incomparavelmente superior à capacitação das empresas brasileiras nas áreas de renováveis. Seja no complexo sucroalcooleiro, seja no setor químico tradicional, as forças empresariais estão surpreendentemente apáticas em face da vastidão e pluralidade das oportunidades que o território e o desenvolvimento brasileiro oferecem.

Sustentabilidade, recursos renováveis, biotecnologia para a valorização dos recursos naturais e para a sustentabilidade são vetores fundamentais a considerar. A contribuição de cada setor ao desenvolvimento deverá ser avaliada por sua capacidade de articular-se com esses vetores. O Brasil pode navegar por mais uma década na demanda imensa que o crescimento rápido criado no período recente criou, reforçada ainda pelo crescimento que a China e as economias congêneres (vastas populações, crescimento com urbanização e consumo material) vão propiciar; mas a reconstrução das capacidades competitivas para além desse horizonte curto de dez anos ou pouco mais depende de definições que devem ser tomadas desde já.

O momento da transição é o das definições de maior impacto. Mas transição é incerteza, e por isso as definições tendem a ser adiadas. O passado brasileiro agrava esse quadro: fomos exímios seguidores, raramente definimos a trajetória. Quando o fizemos, foi muito mais nas atividades com menor densidade e menor dinamismo tecnológico. Pode ser esta a oportunidade de mudar. Afinal, raramente o Brasil teve diante de seu desenvolvimento um tal arsenal de recursos e oportunidades.

 

 

1 Fapesp, Indicadores de Ciência, Tecnologia e Inovação, São Paulo, Fapesp, edições de 2001, 2004 e 2010.
2 O café ainda representava, no início dos anos 1960, mais da metade das exportações brasileiras. Atualmente mal representa 3%.
3 M. L. Possas, Estrutura Industrial Brasileira: Base Produtiva e Liderança dos Mercados (1970), dissertação de mestrado, Unicamp, 1977.
4 F. List, The National System of Political Economy, publicado originalmente (em alemão) em 1841.
5 Na formulação original da Cepal, com o texto fundador de Raúl Prebisch sobre "O Desenvolvimento Econômico da América Latina e Alguns dos seus Principais Problemas" (publicado em 1949), havia uma preocupação explícita com relação ao tema da complementaridade das economias da América Latina, mas ela teve pouca repercussão prática e as barreiras subsistiram durante o período de industrialização acelerada.
6 A Prússia tornou o ensino elementar obrigatório em 1772, algo que a Inglaterra faria apenas 130 anos depois. Essa instituição ajudou a criar uma massa de estudantes candidatos ao sistema de ensino superior que, a partir de 1830, seria o mais importante do mundo por um século. Johann Peter Murmann e Ralph Laudau, "Early Growth in the Chemical Industry, 1850-1914", in Asish Arora; Ralph Landau e Nathan Rosenberg, Chemicals and Long-Term Economic Growth, p. 36.
7 Johann Peter Murmann e Ralph Laudau, op. cit., p. 35. A escolha da química para efeitos de comparação não é fortuita, prende-se ao fato de ser ela uma das primeiras atividades industriais fortemente vinculadas ao desenvolvimento científico, e nesse sentido prenunciar uma prolongada superioridade do primeiro país que colocou a ciência e a formação de numerosos profissionais com conhecimento e treinamento científico como objetivo nacional e alicerce do desenvolvimento industrial e empresarial.
8 Em seu Formação Econômica do Brasil, p. 152, Celso Furtado afirmou: "O protecionismo surgiu nos Estados Unidos, como sistema geral de política econômica, em etapa já bem avançada do século XIX, quando as bases da economia já se haviam consolidado. Pela primeira tarifa norte-americana de 1789, os tecidos de algodão pagavam tão somente 5% ad valorem, e a média para todas as mercadorias era 8,5%. Vários ajustamentos permitiram que a tarifa para tecidos de algodão alcançasse 17,5% em 1808, época em que a indústria têxtil norte-americana já se podia considerar consolidada".
9 "Prior to World War II, U.S. auto companies were the major force in Japan's auto industry. The U.S. presence in Japan started in 1909, when Ford first established an agent to handle its imports into Japan. General Motors followed in 1915, Dodge and Chrysler started Japanese operations in the 1920s. The Japanese Government began to restrict activities of foreign automakers in Japan in the mid-1930s. In 1935, Ford was prevented from carrying out a planned expansion. Shortly after that, the Automotive Manufacturing Industries Law was passed, which protected the domestic industry and limited production by foreign-owned plants. Nissan and Toyota became the only authorized domestic manufacturers. By 1939, foreign-owned production had stopped in Japan, and remaining U.S. assets were expropriated by the Japanese Government in December 1941". Disponível em: http://www.fairimage.org/tradewithjapan.htm.
10 Assim a caracterizou Suzigan, em seu trabalho sobre a política industrial brasileira. Ver W. Suzigan, 1975. "Industrialização e Política Econômica: Uma Interpretação em Perspectiva Histórica", in Pesquisa e Planejamento Econômico 5(2):331-384, dez. 1975.
11 Steindl prosseguiu uma discussão que ocupou anteriormente a tradição marxista e foi sintetizada em termos teóricos por Kalecki, que resume a discussão entre Tugan-Baranowsky e Rosa Luxemburgo. Michal Kalecki, "As Equações Marxistas de Reprodução e a Economia Moderna", in J. Miglioli (org.), Crescimento e Ciclo das Economias Capitalistas, São Paulo, Hucitec, 1983. Para Steindl, a diversificação não pode ser uma saída: os capitais terão sempre no seu setor de origem uma posição mais favorável do que em outros setores. Evidentemente, o grande ausente dessa discussão é o progresso técnico e a inovação. Ver J. Steindl, Maturidade e Estagnação no Capitalismo Americano, São Paulo, Abril Cultural (coleção Os Economistas), 1983.
12 "All the improvements in machinery, however, have by no means been the inventions of those who had occasion to use the machines. Many improvements have been made by the ingenuity of the makers of the machines, when to make them became the business of a peculiar trade; and some by that of those who are called philosophers or men of speculation, whose trade it is not to do any thing, but to observe every thing; and who, upon that account, are often capable of combining together the powers of the most distant and dissimilar objects", A. Smith, A Riqueza das Nações, 1776, Livro I, cap. I, "Of the Division of Labor".
13 Embora tenham ambos tratado do fenômeno da mudança tecnológica, as diferenças entre Marx e Schumpeter dificilmente podem ser exageradas. Para Marx o capitalista é um escravo da concorrência que faz o que faz porque as leis da concorrência assim o impõem. Para Schumpeter, de modo muito diferente, o empreendedor é um indivíduo com características virtuosas singulares, e é graças a elas que ele impulsiona o sistema e assegura a prosperidade típica do capitalismo.
14 M. C. Tavares, Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro.
15 Essa afirmação já foi fortemente contestada por diversos autores, incluindo alguns de grande prestígio, como A. B. Castro.
16 Essa afirmação já foi fortemente contestada por diversos autores, incluindo alguns de grande prestígio, como Ricardo Bielschowsky. Para Bielschowsky, a indústria brasileira encontrava-se em fase de forte crescimento e consistente acúmulo de competências tecnológicas quando foi atingida pela crise internacional que irrompeu no início dos anos 1980.
17 Cf. José Mindlin, acionista e dirigente da Metal Leve, empresa brasileira do segmento de peças para a indústria automobilística, em seu depoimento à "Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar as causas e as consequências do atraso industrial e tecnológico brasileiro". Congresso Nacional, 1991.
18 Entre os casos notáveis, destaque-se a Oxiteno, entre as empresas privadas, e a Polialden, entre aquelas com forte influência do setor público (Petroquisa, subsidiária da Petrobras para a petroquímica). A Oxiteno desenvolveu conhecimentos e capacidades que lhe permitiram enfrentar momentos bastante adversos e manter-se com autonomia e resultados invejáveis; e a Polialden, mais tarde absorvida pela hoje Braskem, conseguiu desenvolver um plástico de ultra-alta densidade que a afastou do mundo das commodities com margens estreitas.
19 http://www.arqanalagoa.ufscar.br/pdf/recortes/R00529.pdf
20 A Abiquim mantém um registro das produções que foram descontinuadas. Ela totaliza mais de uma centena de produtos. Agradeço à Comissão de Economia da Abiquim pelo acesso aos resultados de um trabalho (muito meticuloso) ainda em andamento na área de economia da Associação.
21 Eduardo Urias, A Indústria Farmacêutica Brasileira : um Processo de Coevolução de Instituições, Organizações Industriais, Ciência e Tecnologia, dissertação de mestrado, Unicamp, 2010.
22 Essa legislação foi revogada e as suas práticas associadas foram banidas durante o curto governo de Fernando Collor. Elas não foram posteriormente reinstauradas.
23 Disso dá provas a vocação da principal escola brasileira de formação técnica para a indústria: muito eficaz na formação de trabalhadores com dotes técnicos, do básico ao técnico completo, a instituição revelou sempre uma certa rejeição à fundamentação tecnológica (o que dizer da científica) no aprendizado. A endogenia dos seus quadros técnicos e dos seus gestores contribuiu também para as fronteiras que separam o Senai do conhecimento de base científica e da tecnologia como prática fundamentada.
24 "Cada país, dizia ele [Santos Dumont], deveria desenvolver sua própria tecnologia, a par com o avanço da ciência aeronáutica, dirigida para projetos e produção de aparelhos, e também como desenvolver produtos e materiais, de acordo com processos e métodos técnicos dos respectivos parques industriais. Essas recomendações foram repetidas por Santos-Dumont no Congresso Científico Pan-americano, em 1915, e, no Brasil, no período de 1915 a 1918, em seus pronunciamentos orais e em seus escritos, procurando atrair a atenção dos membros do Governo, com profética antevisão do futuro sobre o importante papel que os aerostatos e os aviões iriam desempenhar no mundo. Foi em seu livro O que Vi, o que Veremos, editado em 1918 pela Editora A Encantada, que Santos-Dumont registrou a ideia de criação de uma escola técnica, no Brasil, voltada para a aviação, antevendo um centro de tecnologia que só se efetivaria cerca de 30 anos mais tarde. Eis o parágrafo do livro: 'Eu, que tenho algo de sonhador, nunca imaginei o que tive ocasião de observar, quando visitei uma enorme fábrica nos EUA. Vi milhares de hábeis mecânicos ocupados na construção de aeroplanos, produzindo diariamente de 12 a 18'". Disponível em: http://www.cta.br/origemconceitual.php.
25 Eis uma expressão que suscita espaço para interpretações equivocadas: valor agregado. Há mais valor agregado num real de soja ou de medicamento, num real de minério de ferro ou de automóvel? Há exatamente o mesmo valor agregado. O valor agregado corresponde à soma das remunerações dos fatores de produção que participaram da atividade produtiva, diretamente (trabalho) e indiretamente (os equipamentos, por meio de sua depreciação), acrescidos das remunerações do capital (o lucro). Tudo o mais constante, todas as atividades agregaram o mesmo valor. A diferença não está no valor agregado, mas na intensidade dessa agregação: se qualquer atividade produção (de soja, de minério de ferro, de medicamento ou de automóvel) possui "x" horas de trabalho, a intensidade da agregação é o valor adicionado dividido por "x" horas. A intensidade da agregação por unidade de fator produtivo é o quociente entre o valor e as horas despendidas nessa atividade, sendo maior na atividade em que o denominador for menor. Se a produção de soja for feita em bases competitivas, resultando em elevada produtividade e eficiência, a mesma agregação de valor resultará numa rentabilidade maior (e portanto em possibilidades maiores de expansão) do que numa atividade em que a maior intensidade de agregação de valor for feita em bases tais que a rentabilidade da atividade resultar inferior (e portanto oferecendo menores oportunidades de expansão).
26 Muitos segmentos atuantes na vida política nacional sustentavam que as empresas estrangeiras nunca estariam dispostas a participar de modo ativo do esforço de industrialização. A incompreensão sobre o momento histórico de internacionalização do capital industrial europeu e estadunidense terá também contribuído para a entrega simples de vários núcleos dinâmicos da indústria e da tecnologia em condições muito mais favoráveis do que seria necessário. A Instrução 113 (da Superintendência da Moeda e Crédito) foi o principal instrumento cambial-financeiro para essa atração. Instituída no interregno Café Filho, foi amplamente utilizada posteriormente.
27 Existe uma detalhada cronologia da indústria automobilística coreana na página do Wikipedia (em inglês): http://en.wikipedia.org/wiki/Automotive_industry_in_South_Korea#1950s. Ela mostra de modo detalhado os esforços de absorção e a busca muito ativa de desenvolvimento de capacidades autônomas. É evidente que, por suas características de produção em larga escala, competição intensa e dinâmica de mercado com elementos de diferenciação muito pronunciados, a indústria automobilística possui efeitos de aprendizado e de difusão tecnológica que a aproximam de um número de setores industriais muito maior do que uma indústria estratégica (no sentido militar).
28 O caso notório é a política (de reserva de mercado) de informática que vigorou sobretudo nos anos 1980. Seus excessos são julgados uma causa de atraso por uns e suas insuficiências são vistas por outros como explicação da frustração de suas promessas.
29 F. Fajnzylber formulou essa hipótese e comparou esse protecionismo com aquele que prevaleceu no modelo asiático. F. Fajnzylber, La Industrialización Trunca de América Latina, México, D.F., Editorial Nueva Imagem, 1983.
30 Essa a hipótese que foi tradicionalmente sustentada por todos aqueles que se opunham às políticas industriais ativas e que granjearam progressivamente apoios mais amplos.
31 Siderurgia (de ferrosos e não ferrosos), mecânica (motores elétricos, equipamentos de refrigeração), aparelhos e máquinas com baixo conteúdo eletrônico (incluindo máquinas de terraplenagem) são exemplos evidentes. A competitividade em alguns segmentos com maior conteúdo eletrônico e informático apoiam-se nos regimes de proteção e nas especificidades institucionais.